Edição 2023
Cuidados Singulares – do indivíduo ao ecossistema
“Para educar uma criança, é necessária uma aldeia inteira”
(provérbio Malinês)
Há tempos as sociedades ocidentais contemporâneas estão com dificuldade de tomarem para si a responsabilidade no cuidado pessoal, coletivo e ambiental. E o resultado disso são as crises de saúde humana e planetária, acirradas pelas pandemias, pelo adoecimento mental, o capitalismo predatório, a desigualdade e a violência das gestões autoritárias.
Recolocar a vida no centro das ações e decisões depende de (re)lembrarmos, (re)inventarmos e praticarmos novos modelos de cuidado, que tenham como ponto de partida os saberes populares e ancestrais pautados na cooperação e na abundância, sem deixar de lado, claro, a ciência e as novas tecnologias alinhadas a valores humanitários e solidários. Para tanto, uma postura humilde e amorosa diante da dimensão sagrada da vida é crucial.
As culturas dos povos originários têm muito a nos ensinar nesse sentido. Além da consciência expandida sobre os elos entre todos os seres que compõem a delicada teia da vida, mostram que o cuidado enquanto escolha é uma arte plural que envolve uma ética de pertencimento e de sentido do coletivo que pode e deve ser praticada em todos os lugares, da floresta às grandes cidades.
Cuidar no seu sentido mais amplo é entendido por muitos povos como uma das mais importantes responsabilidades divididas pela comunidade e implicadas com o bem viver e a potencialização da vida.
Todos os filmes desta edição têm como eixo a política e a ética do cuidado, a começar pela escolha de jogar luz na diversidade, qualidade e abundância da produção nacional e reforçar a luta pela valorização do nosso setor audiovisual, como intrínseco e necessário à saúde e à sustentabilidade da educação e da cultura brasileiras.
Dentre eles, destacamos os inéditos no cinema: Cordelina, de Jaime Guimarães, que abre a nossa mostra, que nos ensina sobre a potência do encantamento e de uma atitude de constante renascer perante a vida, A invenção do outro, de Bruno Jorge, e Bia, de Taciano Valério.
No repertório que reunimos, retornamos às nossas raízes, como não podia deixar de ser, trazendo algumas das inúmeras e belíssimas produções sobre os saberes, cuidados e lutas das diversas tradições dos nossos povos nativos e originários. Algumas delas na perspectiva das crianças, como no longa Para’í, de Vinicius Toro, e outros olhares, como na série de curtas Flecha Selvagem, dirigida por Anna Dantes, a partir da ideia original de Ailton Krenak, uma das principais vozes do pensamento originário na atualidade.
No documentário, Kunhã Karai e as Narrativas da Terra, de Paola Mallmann Oliveira, Renata Tupinambá, curadora e comunicadora indígena, diz: “A cada respiração a magia da vida nos conecta a todos os seres. Nesse momento, nosso coração não pertence apenas a nós, mas a toda a humanidade”.
Ainda no foco, mas ampliando a visão das questões indígenas, Uýra – A retomada da Floresta, de Juliana Curi, é um dos filmes da nossa seleção que, através da jornada de autodescoberta e autocuidado pela floresta amazônica, uma artista trans indígena cuida de jovens transmitindo mensagens ancestrais para que consigam enfrentar o racismo estrutural e a transfobia no Brasil.
Aventura e fantasia sempre estão presentes na nossa seleção. A jornada de Claé e Bruô, agentes-secretos de reinos rivais retratados na mais recente e premiada animação de Alê Abreu, nos mostra a força da superação das diferenças e da união na busca pelos Perlimps, criaturas misteriosas que apontam para um caminho de paz interior e amor em tempos de guerra.
Mais silenciosos, mães e pais, irmãs e irmãos, buscam equilibrar os ruídos, excessos e distrações do mundo contemporâneo, trazendo mais presença, escuta, natureza, saúde e amor durante a gestação, a primeira infância e a adolescência. Essas questões estão muito bem conduzidas em Dos 3 aos 3, de Pablo Lobato, Guigo offline, de Renê Guerra, Limiar, de Coraci Ruiz.
Observar e repensar o lugar dos idosos na nossa sociedade e as políticas de cuidado para esta faixa etária diz muito do valor que damos para a vida. E os filmes de Allan Deberton, Pacarrete, Luci e a Terra de Kátia Klock, e Mari Hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Tramari, com muita sensibilidade, nos levam a refletir sobre a necessidade desse cuidado permanecer vivo ao longo do tempo, e de darmos atenção aos nossos sonhos, individuais e coletivos, para que possamos ser a melhor versão de nós mesmos.
No âmbito da educação escolar, para além das “competências gerais da base nacional comum curricular”, um avanço enorme da nossa sociedade, muitas escolas e famílias se juntam para resistir às demandas do mercado e trabalhar nas suas práticas a ética do cuidado de forma transversal aos conteúdos pedagógicos. Vamos encontrar provocações aos antigos modelos de educação nos filmes Yasmim não quer ir à escola e os Guerreiros Xucurus, de Lico Queiroz, Em busca das telas amigáveis, de Igor Amin e Uma escola no Marajó de Camila Kzan.
Sem perder a conexão entre educação e saúde, O começo da Vida 2 – Lá fora, de Renata Terra, joga luz na importância da reintegração da natureza como parte do ecossistema urbano, numa reflexão sobre a saúde das crianças e jovens nos grandes centros.
Todos os cuidados dessas narrativas arrebatadoras se entrelaçam às atividades paralelas que compõem a nossa programação e reúnem pessoas especiais de diferentes áreas do saber e de práticas diversas para nos ajudar a transformar e nos comprometer com nossos valores. Como a aula aberta Cuidados com o outro, o coletivo e o meio nas produções audiovisuais, com Rita da Silva e Kurt Shaw; a roda de conversa Experiências escolares de cuidado coletivo, mediada por Lourdes Atié; as sessões especiais de filmes seguidas de bate-papo; as oficinas Caminhos de Cuidado, com Rodrigo Carancho, Em busca das telas amigáveis, com Igor Amin e Poesia à solta na natureza, com André Gravatá. E, para além das telas, o saguão acolhe a vivência Caminhando em seus sapatos do Museu da Empatia e as exposições: Remédios Urbanos, do artista Rage e Cerâmica Semente, da artista Bia Pappone, que inspira a arte desta edição.
Diante dessas inquietações, neste reencontro presencial, que acontece de 6 a 8 de outubro no Espaço Itaú de Cinema Augusta, em um cinema que cuida da rua há três décadas, a Ciranda de Filmes vai refletir sobre a nossa postura ética e estética frente ao mundo, assumindo o cuidado como uma forma de resistir, ser e de se expressar que contribui para esse bem viver.
Cheios de alegria, convidamos a todos para, de mãos dadas, olhos nos olhos, nessa Ciranda que é de todos nós, reforçarmos nosso compromisso de cultivar os Cuidados Singulares, do indivíduo ao ecossistema.
Desde já, a Ciranda começa a girar com a força da indagação de Shirley Krenak:
“E aí, que tipo de adubo você quer ser para mãe terra?”
Sobre sementes, palavras e a arte da Ciranda
Plantar uma semente é um ato de amor e uma prática ativa de esperança que nos leva a um outro entendimento do ser-planta e do tempo.
Para colher o fruto, precisamos não só saber esperar, mas saber cuidar para que as condições ambientais ideais levem à germinação do embrião-semente, originando as raízes e as folhas de uma nova planta, uma nova vida.
Água, ar, sol, nutrientes, solo, cuidado. É disso que o gérmen, em sua singular potência e ritmo, precisa para iniciar a sua dança em busca do sol e dos nutrientes do solo para prosperar. A dança da vida.
Escolhemos o trabalho de Bia Pappone da Cerâmica Semente para compor a arte e identidade desta edição, tanto pela simbologia da semente, quanto pela força e beleza do trabalho com o barro.
Bia diz que desde que começou a fazer cerâmica, formas orgânicas predominaram de maneira espontânea em suas peças, como se o próprio barro ditasse às suas mãos o que modelar. Pequenas sementes se formavam naturalmente quando ela movimentava pedacinhos de argila entre as mãos. Foi o que a motivou a começar a explorar intencionalmente seus variados formatos e tamanhos.
Inspirada na natureza dos biomas brasileiros, a cerâmica artística de Bia Pappone apresenta uma nova flora através das sementes imaginadas. Numa releitura de curvas, texturas e volumes, ela modela sementes e frutos reais ou imaginados para nos reaproximar da natureza e trazer seus potentes simbolismos ao nosso cotidiano.