Olhares

De encontro aos filmes, palavras e a presença que cuida e ensina a cuidar

28/11/2023

Por Mayara Rozário, jornalista de cultura

Revisão por Thais Caramico, jornalista, pesquisadora de literatura para a infância, sócia-fundadora do Estúdio Voador

Quando a Ciranda de Filmes convida ao cuidado, faz um chamado para uma imersão nesta temática, tão calorosa e central. De 6 a 8 de outubro, no Espaço Itaú de Cinema Augusta, que completou 30 anos de existência e história, estivemos de corpos e mentes presentes e abertos a estes saberes, através da curadoria, dos filmes e das oficinas e suas propostas. A experiência do encontro e da troca de experiências nos permitiu cuidar e sermos cuidados de um jeito singular desde a primeira atividade.

Participar de um encontro é fazer silêncio, praticar a escuta atenta e manter em movimento a tradição da oralidade que nos agrega um sentido de comunidade como nos mostrou Rodrigo Carancho, educador, pesquisador e fundador da Escola Aberta do Cuidado, durante a oficina “Caminhos do Cuidado”.

Cuidado pode ser escuta.
Cuidado pode ser memória.
Cuidado pode ser verbo.
Cuidado pode ser dignidade.
Cuidado pode ser tempo.

“Histórias de cuidados sempre estiveram presentes, mas começamos a fazer cuidado a partir do momento da revolução cognitiva, um marco importante para a nossa espécie, onde a linguagem começa a se formar. E com a linguagem vem a memória e as histórias”, reforçou.

Um convite a percorrer intensamente, quase como o educador fez ao pegar a sua kombi e seguir por mais de 20.000 km pelo território brasileiro testemunhando histórias, sonhos, rituais, curas, memórias e esperanças, o universo do cuidado de um Brasil profundo pela perspectiva de mestres e mestras do saber.

Através de uma pesquisa-expedição onde Rodrigo ouviu inúmeras histórias de parteiras, benzedeiras, poetas, raizeiras, artesãos e pajés, conseguimos traçar um percurso para falar de escuta e suas relações com memória e com futuro, entrelaçados ao cuidado e a dignidade, definida pelos participantes da oficina como identidade e respeito.

Fotografia: Vanessa Zanforlin

Durante o processo, os participantes entraram em contato com o território brasileiro como não homogêneo, onde muitos significados se fundem parindo culturas, visões de mundo, linguagens, acessaram e compartilharam memórias preciosas de quem cuidou e os ensinou a cuidar e a potencializar a vida.

“A oficina foi uma grande oportunidade para cuidar através de uma perspectiva contemporânea, mas a partir de inúmeras histórias de um Brasil profundo, que forma e que formou a nossa identidade, a nossa maneira de olhar para o mundo, de enxergar as coisas, não só as relações, mas também as relações com o ambiente e sobretudo com a cultura. Histórias de um povo que sobreviveu porque soube cuidar. E foi muito pertinente a gente poder fazer uma oficina dessas em um evento cujo tema é Cuidados Singulares, porque é também um jeito de discutirmos a crise de cuidado na sociedade contemporânea que passa pelas emergências climáticas, sanitárias, e como queremos responder a esses desafios no futuro, mas sempre olhando para um passado que nos trouxe até aqui com saber, memória, dignidade, mas principalmente com escuta”, concluiu Rodrigo.

Na oficina “Como educar crianças no mundo das telas”, ministrada por Igor Amin, Mestre Interdisciplinar em Ciências Humanas na linha de Educação, Cultura e Sociedade e diretor do filme educativo “Em busca das telas amigáveis”, exibido na Ciranda – Cuidados Singulares, resgatamos algo muito importante que fora lembrado por Rodrigo no dia anterior: o cuidado é um exercício de presença.

Por isso, estar presente com as crianças nas telas é um modo de torná-las aliadas e não as vilãs do roteiro. Como destacado por Igor, o cinema é um ritual cheio de força que permite que as crianças vejam, façam, pensem e sintam filmes como elas querem e se apropriem das telas – com a supervisão dos adultos, para exercitar a criatividade e desenvolver visões de mundo a partir das próprias experiências através da linguagem audiovisual.

“Existem vários tipos de tela: celular, câmeras, computador, cinema, tablet, centenas de telas. A linguagem das tecnologias e das telas são infinitas. Precisamos pensar em meios que as tornem úteis, meios para que sejam amigáveis mais do que boas ou ruins. Eu tenho um processo de escuta com as crianças, elas são as diretoras do processo para mim, e junto com elas dirijo filmes e sou muito realizado com isso. O audiovisual é uma linguagem potente e não é só para ver. As crianças também podem entender como é a feitura por trás do que elas estão vendo, pensar através do audiovisual e das telas, e desenvolver o olhar, a criticidade”.

Fotografia: Mayara Rozário

O tempo de exposição à tela, o cuidado, responsabilidade, mediação, ética e criatividade no uso dos aparelhos eletrônicos também foram temas abordados. De forma divertida e entre batidas de claquete e gritos de “corta” do Joaquim, assistente do dia escolhido na plateia, assistimos um pequeno espetáculo audiovisual com projeções de trechos de filmes educativos e ambientais infantis, e dividimos os maiores desafios e oportunidades de educar os filhos e filhas em um contexto de excesso de tecnologias no cotidiano.

“Fiquei muito tocado ao falar sobre essa perspectiva de a gente ver, fazer, pensar e sentir filmes, e obviamente co-criar com as crianças processos de ensino e aprendizagem através da linguagem audiovisual. É o meu trabalho há 17 anos e eu aprendi muito com as crianças como acessar a minha criança interior e isso tem a ver com o cuidado, que é muito singular, muito íntimo. Durante a oficina pude partilhar essas experiências, principalmente as do Vale do Jequitinhonha, na Comunidade de São Gonçalo do Rio das Pedras (MG) e lá eu tenho muitos amigos crianças da comunidade quilombola Vila Nova, então pude compartilhar um projeto novo chamado Tele Garrafas, que fala sobre as águas e a relação do direito das crianças ao acesso às águas. Foi emocionante”, nos contou Igor Amin após a atividade.

As palavras de Igor, a participação das crianças e dos adultos, as vozes, as risadas, a oportunidade de estar junto, olho no olho, tudo foi poesia. Essa que se repetiu no domingo, dia 8 de outubro, na oficina “Poesia à solta na natureza” com André Gravatá, poeta, educador e codiretor do filme “O aniversário da Terra” com João Gabriel Hidalgo, também exibido na Ciranda 2023.

“Ouvir o curso da palavra e não o discurso do papel”. Foram com essas palavras que André e os participantes da oficina deram início a uma enriquecedora e singular reaproximação com a poesia – um bicho vivo que a gente sente na ponta do fósforo, na terra, no corpo.

Fotografia: Vanessa Zanforlin

“Convido vocês a se relacionarem com a poesia sem ficar com a mente que tenta entender os significados, que interpreta logo de cara. Tem um poeta que gosto muito que se chama Manoel de Barros, ele fala que a poesia não é para entender, é para incorporar, nesse sentido de dar espaço para que o corpo vá caminhando por aquele terreno. Assim, o terreno vai conversando com você também”, disse André enquanto todos se acomodavam em uma roda e se acostumavam com a ideia de soltar a palavra.

A partir do encontro com a terra, a água e o fogo, a palavra se fez sopro. Um momento despretensioso fruto do agora: todos que estavam presentes acenderam o palito de fósforo sem saber o que falariam e ascenderam o pincel com tinta de terra sem saber o que expressariam.
Os sentidos foram aguçados e a poesia aconteceu e foi lembrada como prosa, infância e vida, em momentos do cotidiano como ver o filho brincando ou ver o sol nascendo pela janela antes das 6 horas da manhã. E como uma forma de se relacionar com o mundo.
“Fizemos poesia a partir do tempo do fogo do palito de fósforo, fizemos poesia com tinta de terra, a partir do encontro e da conversa. Entramos em contato com versos de poetas que alimentam a gente e fomos criando. O encontro tem a ver com os cuidados singulares porque a poesia é uma chance de vida nesse mundo de tantos descaminhos. A poesia é um respiro”.

O sabor do encontro tem a ver com envolvimento, e o da Ciranda de Filmes – Cuidados Singulares foi intenso, doce e inesquecível, como a dádiva de estar presente, reforçar a responsabilidade com o bem-viver e como uma brisa fresca que dá fôlego para seguir.