Olhares
Cuidado: éticas e tradições
04/10/2023
Por Soraia Chung Saura e Ana Cristina Zimmermann*
O cuidado sempre figurou como uma experiência universal. De fácil comprovação. Basta lembrarmo-nos quantos foram os cuidados necessários para que cada um de nós estivesse aqui. Falamos de práticas tão antigas quanto a própria humanidade. Portanto, vale a máxima: práticas de cuidado são fundamentais. Quem haveria de discordar?
No entanto, é importante lembrar que, ao menos até bem recentemente, as ações de cuidado estiveram historicamente desvalorizadas no campo das ciências hegemônicas. Assim, a tradição científica e sociocultural enaltecia especialmente conhecimentos intelectuais. Professoras, por exemplo, poderiam ofender-se ao serem nomeadas cuidadoras. Menos elevadas, as práticas de cuidado trazem em seu cerne nossa herança colonizadora. Trabalho braçal e gestos de cuidado estiveram vinculados como saberes corporais de pouca admiração e projeção social. Ainda que acompanhados de belas cantigas, parte da tradição desta consciência sensível.
E na linha de frente dos trejeitos de cuidado, lá estavam elas, as cuidadoras. Também na pandemia. Muito embora mesmo antes desta crise humanitária, a ciência já anunciasse seu revés: o reconhecimento de saberes guiados por outras bases epistemológicas necessárias ao tempo presente. Sentir, olhar, escutar, perscrutar e silenciar. Assim que nas últimas décadas, a ciência torna-se mais aberta, complexa, integrativa – por força das necessidades planetárias. A pandemia aguça essas noções. Percebemos de forma mais latente a importância do cuidado, e dos movimentos e atitudes que o envolvem. Valorizando mormente pessoas na árdua tarefa de cuidar de si e dos outros. Os dados são claros: essas práticas tem atravessamentos de gênero, raça, classe. E hoje ganham destaque científico.
Foi a Organização Mundial do Trabalho quem produziu um relatório a partir da experiência pandêmica. Os dados – sempre alarmantes – mostram que as mulheres são responsáveis, no planeta, por mais de três quartos do tempo gasto em trabalhos de cuidados. São 16,4 bilhões de horas por dia nesta frente essencial para o globo terrestre. Note-se que todos esses números falam de um trabalho não remunerado. Temos o equivalente a 2 bilhões de pessoas trabalhando 8 horas por dia gratuitamente. Se esse trabalho fosse pago, corresponderia a 9% do PIB global. Os desafios neste campo, enquanto políticas públicas, incluem a necessidade exponencial e crescente de serviços de cuidado. Também a de enfrentar a enorme disparidade entre as responsabilidades que recaem sobre mulheres e mulheres negras em especial.
Quando nos voltamos ao campo da experiência acadêmica, gostamos de contar que foram as cientistas mulheres, na década de 90, que concluíram que tudo que pertence à emoção e ao corpo também deveria ser determinantemente relevante ao conhecimento. As teóricas feministas enfatizaram o papel importante e útil das emoções, como o cuidado e a empatia. Tradicionalmente, as atividades de cuidado das mulheres têm sido assimiladas ao que é natural e instintivo, em vez de serem o que são: socialmente construídas. E a investigação de cientistas mulheres esclarece e clarifica essas diferenças, aumentando a percepção sobre a importância das relações de cuidado. Talvez porque a vivam no corpo, talvez porque sempre cuidaram, a Ética do Cuidado é um campo teórico que surge dessa experiência feminina.
Mulheres sempre souberam que sobrevivência depende de interdependência. Cuidar de si mesmo, dos outros e do ambiente é falar de uma ética concreta. E de acordo com Virgina Held, as características principais desta ética são: atenção às necessidades das pessoas pelas quais assumimos responsabilidade; valorização das emoções como simpatia, empatia, sensibilidade e capacidade de resposta; questionamento sobre os limites de aplicabilidade de regras universais e abstratas de teorias morais dominantes; problematização das noções tradicionais sobre o público e o privado; abordar questões morais que surgem nas relações entre desiguais e dependentes; e a concepção de pessoas como relacionais e interdependentes moral e epistemologicamente, e não como indivíduos independentes e autossuficientes. Essa Ética questiona a noção de universalidade e amplia as fronteiras convencionais do debate. A Ética do Cuidado não exclui a Ética da Justiça: ambas devem atuar em comunhão. Mas para além dos princípios de igualdade e individualidade, suas decisões estão baseadas no bem comum, valorizando os laços que temos com outras pessoas e os relacionamentos reais que contribuem para a potência e o fortalecimento de quem somos – individual e comunitariamente. Quando as curadoras Fernanda Heinz e Patrícia Durães escolhem os Cuidados Singulares como temas diretivos dessa Mostra, referem-se a tudo isso. E um pouco mais.
Porque as investigações e pesquisas em diversas áreas do conhecimento tem estabelecido diálogo com as comunidades tradicionais brasileiras, de modo crescente. Nós do Grupo de Investigação PULA (que reúne pesquisadores da Faculdade de Educação e da Escola de Educação Física e Esporte, na USP), realizamos investigações a partir do campo da Filosofia e do Esporte há mais de uma década. Os fenômenos não são abordados como objetos de estudo, mas como campos que integram sujeitos e saberes que merecem nossa atenção, seguindo os passos científicos que reconhecem a experiência perceptiva produzida no interior destas comunidades. Encontramos ali a expressão desta Ética – em suas tecnologias sustentáveis e relações não predatórias com o ambiente, uma vez que não visam a obtenção de lucro, mas a manutenção de um sistema. A noção de cuidado e bem comum é amplamente desenvolvida nestes territórios – e podemos apontar cuidados ambientais, territoriais, étnicos e identitários. Mas também falamos de cuidados intergeracionais, intercorporais e de delicadezas presenciais. Cuidados cotidianos. Silêncios e espaços de respeito. Escutas sensíveis e atentas aos sons e ciclos do ambiente. No campo social, podemos mencionar por exemplo, a irrestrita deferência aos idosos, que nestas comunidades são os verdadeiros guardiões e guardiãs dos saberes acumulados geração após geração. Considerados a memória viva destas populações, ligando os aprendizados do passado a prognósticos futuros. Ou sobre as diferentes infâncias vividas nestes territórios com suas liberdades, ritos, culturas e relações com o meio.
A lista do que ainda podemos aprender com estas comunidades é imensa. Destacando que se trata sobretudo de um aprendizado calcado na experiência corpórea. E que merece ser vivido por nós neste corpo – seja por meio de suas práticas corporais, brincares, danças, cantos, jogos, esportes. Seja pelas expressões artísticas que nos permitem experienciar outros mundos possíveis. E nisso o cinema nos fornece uma experiência ímpar de nos embalarmos no Bem viver.
Ailton Krenak, parceiro de longa data da Ciranda de Filmes, dando voz aos conhecimentos de seu povo, amplia essa noção de cuidado. Fala em defesa de uma cosmovisão em que a diversidade e a integração entre os diversos seres da natureza dão sentido à vida. Traz parâmetros de uma ecologia profunda, de um perspectivismo que reconhece saberes de outras espécies. Nossos povos indígenas e tradicionais continuam habitando as florestas com as mesmas características simbólicas e sustentáveis. Lembrando que somos o país mais biodiverso do planeta, concentrando 20% de fauna e flora! Essa biodiversidade se traduz em uma sociodiversidade, com uma quantidade ímpar de povos tradicionais, mais ou menos isolados, que continuam a nos oferecer sem palavras, mas com gestos, seus conhecimentos. Dentre essas populações, o cuidado é prática e modus operandi central.
A ideia de um bem-viver está associada a uma relação sustentável com a natureza, não separada dela, que inclui visões de mundo míticas e um modo de ser que a natureza autoriza e parece, se felicita em nossos corpos e espíritos, segundo David Kopenawa Yanomami. Essa noção aparece em todas as diferentes nações indígenas. O conceito de Sumak Kawsay ou Buen Vivir, traduzido como Bem Viver, baseia-se nestes sabedores tradicionais e tem sido amplamente considerado como uma alternativa para nossa sociedade ocidental. Das nações indígenas, ele foi difundido entre os acadêmicos e integra políticas públicas, incluindo as constituições da Bolívia e do Equador. Difere-se da ideia ocidental de bem-estar, que se concentra no acesso a bens, serviços e riqueza. Nesse sentido, o bem viver pode até ser considerado uma utopia, mas é praticado por essas populações, que nunca prejudicaram o planeta apesar de habitarem a Terra desde o início dos tempos.
Quando a Ciranda de Filmes convida ao cuidado, faz um chamado para uma imersão nesta temática, tão calorosa e central. Assim, estaremos em corpos presentes e abertos a estes saberes, advindos da curadoria, dos filmes, das oficinas e suas propostas. Sobretudo, da experiência do encontro e da abertura ao diálogo, que nos permite cuidar e sermos cuidados.
Sobre as autoras:
* Soraia Chung Saura ´é professora na Escola de Educação Física e Esporte da USP, orienta e leciona nos Programas de Pós Graduação da EEFE-USP (na linha Estudos Socioculturais do Movimento Humano) e também na Faculdade de Educação da USP (na linha Cultura, História e Filosofia da Educação).
Dentre seus objetos de investigação estão: os Jogos, Festas, Manifestações e Gestos de Comunidades Tradicionais; o Brincar Livre com o Território do Brincar; o Lazer e outros modos de viver a corporeidade em consonância com uma perspectiva decolonial e de ecologia dos saberes. É membra Ad Hoc do International Council of Traditional Sports and Games – UNESCO/ONU.