Você se lembra da primeira vez que foi ao cinema? Alemberg Quindins, fundador da Fundação Cultural da Casa Grande, contou sua relação com a arte desde criança.
“Meu nome é Alemberg Quindins, eu nasci no Cariri, uma região entre Pernambuco, Paraíba, Piauí e o Ceará, ao sul da Chapada do Araripe. Um território que chamamos de Cariri porque existia um povo chamado Cariri”, assim se apresenta Francisco Alemberg Quindins, produtor cultural, multiartista e fundador da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem do Kariri. Nesta conversa com a Ciranda Cirandinha de Filmes, ele compartilhou sua história com a sétima arte, como a primeira vez em que viu um filme nas telonas e como criou seu próprio cinema em sua cidade, aos nove anos.
Foi com uma vizinha em Nova Olinda (CE), contadora de lendas e histórias, que Alemberg aprendeu a imaginar. “Ela era descendente de Cariri e me levava pra casa dela, ou melhor, eu ia até a casa dela porque eu gostava de ir lá. Ela pegava uma estatueta de madeira e começava a contar a história do povo Cariri”, relembra. Ali, Alemberg tinha certeza que conseguia ver o que a vizinha contava. Para ele, o cinema começou aí: por meio de “uma boca falando e uma língua imaginando”. Desde aquela época, o menino Alemberg Quindins aprendeu a sonhar.
De Nova Olinda, se mudou com o pai e o irmão em busca de outro chão e foi parar em Miranorte (TO), entre o rio Tocantins e o rio Araguaia. No novo endereço, a família conheceu o Cine Bandeirante, onde iam aos fins de semana. Ir ao cinema era um evento importante, que exigia uma preparação: “Meu pai botava música na vitrola enquanto a gente ficava tomando banho. A trilha ia tocando enquanto as crianças da cidade iam tomar banho”.
Foi no Cine Bandeirantes, em 1974, a primeira vez que Alemberg passou pela experiência mágica de estar numa sala escura cheia de imaginação. E tudo parecia realmente mágico: “o dinheiro do pai pra gente comprar um suspiro, que era docinho e que derretia na boca, a banquinha que a família botava pra vender bombom, a fila pra entrar com ingresso, uma parede onde tinha uns cartazes, aqueles posterzinhos promocionais mostrando cenas do filme que você via antecipadamente, as cortinas vermelhas com as franjas bordadas, as luzes ao lado e duas placas vermelhas assim dizendo ‘Não Fume’ e ‘Silêncio’. Aquilo era o cinema!”.
“O primeiro filme que assisti foi em 3D”
Naquele dia, o filme exibido no Cine Bandeirantes, visto por Alemberg foi “Sansão e Dalila” com Victor Mature, Angela Lansbury e Hedy Lamarr, um clássico do cinema hollywoodiano. “Quando abriu a cortina e começou aquela imagem rodando, eu me transportei para dentro do cinema. O primeiro filme que eu assisti foi em 3D. Por que eu digo que foi em 3D? Porque quando muito mais pra frente apareceu o cinema 3D, eu constatei isso e digo: foi isso que eu vi! E nunca mais parei de sonhar!”.
Desde aquele dia, o encantamento não acabou, nem a vontade do Alemberg Quindins de descobrir o audiovisual mais e mais. Depois de um tempo, ele passou a ver os filmes de um jeito diferente. Enquanto os meninos olhavam pra tela, Alemberg via de costas. Ele queria entender como funcionava aquela mágica e de onde saía o jato de cor. Passou a investigar com os olhos de análise que só uma criança tem. “Eu comecei a observar que era um jato de luz que saía forte, que passava por uma tirinha de fotografia. No jato de luz, eu via aqueles fragmentos de poeira. Era como se fossem aqueles pontos de poeira que levassem a imagem daquela fita para tela. E também tinha o som. Ele ficava por de trás de uma cortina, a cortina não fechava toda porque fechava só pra descobrir a tela. Quando abriu aquilo ali, pra mim abriu o mágico, o portal do encantado. Eu disse pra mim mesmo: “Eu vou fazer cinema!”.
Meu próprio cinema, o cineminha do Beg
Foi ainda com nove anos que começaram os estudos autônomos de Alemberg em busca do sonho de ter o próprio cinema. Em casa, foram realizados vários testes com materiais diversos. Plástico, durex, desenhos de cenas em pincel, lanterna, e ainda não estava dando certo. Até que um dia, à noite, com o lampião aceso, percebeu sua imagem refletida na parede de frente para o objeto. “Eu me vi bem grande como se fosse a minha grande sombra. E aí eu vi que, quando eu mexia no lampião, a minha imagem se mexia sem mexer. Quando eu me aproximava da parede, eu diminuía. Quando eu me distanciava da parede e me aproximava do lampião, eu ficava maior. Aí eu disse: “É o cinema!”.
Foi numa caixa de madeira, com personagens, falas e trilha sonora criada por ele, que nasceu o Cineminha do Beg. Muitos clássicos foram exibidos lá, como “Sansão e Dalila”, “O Ouro de Mackenna” e “O Dólar Furado”. As crianças vibravam! “Eu fico pensando hoje como era que eu prendia a meninada durante uma sessão de cinema todo”, relembra.
“Eu sempre quis ter um quarto de brinquedos quando era criança, esse quarto de brinquedos é a ‘Casa Grande’. Eu criei uma instituição em que as crianças são gerentes, são diretores, é toda gerida por crianças. Isso foi o cinema que me deu. Essa é minha história”.
Clique aqui para conhecer melhor a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri. Veja também este papo em que Alemberg Quindins conta mais histórias do seu cineminha
por Renato Nery e Vicky Romano, fundadores da Veoveo
Ludo tinha 4 anos quando viu pela primeira vez a Patrulha Canina. Depois de alguns meses quase enlouquecemos! A música de abertura insistia e quando menos esperávamos surgia em looping em nossas cabeças. Naquele momento, em 2017, ficou claro que, no meio de tantos brinquedos, livretos para colorir e todos os produtos transmídia lançados, que a série era um chiclete com grande poder de persuasão. O fascínio estético induzia a hipnose, a trama flat com sua confortante e controlada modulação baseada em causa e efeito criava uma sensação de que não existia conflito. Aqueles personagens fofos e estereotipados escondiam uma estrutura hierárquica velha que reforçava junto com o combo padrões de preconceito que não queríamos!
Pela primeira vez ficamos incomodados com todo aquele desejo. Afinal, até então foram alguns anos dedicados aos conteúdos para crianças. E agora com a audiência ali, bem pertinho, tínhamos que desenvolver todo tipo de estratégia para resgatá-lo daquele poço sem fim. A ironia era que quase 80% dos temas da série se referiam a algum tipo de resgate e para resgatá-lo começamos a buscar e catalogar conteúdos diferentes, alternativos, uma luta contra o algoritmo da rede que insistia em não mostrá-los. Aquela internet dos anos 90 já não existia mais, toda aquela promessa de acesso livre tinha sido subvertida pelo hábito e exploração econômica. Tudo está automatizado. O algoritmo reforça apenas o padrão. Este discurso “smart”, na verdade, esconde um usuário pouco inteligente. Então, se o seu filho sabe mexer em um sistema de navegação intuitiva, num smartphone, não significa que ele esteja desenvolvendo o cérebro, significa que ele está funcionando dentro do padrão, sendo condicionado a não pensar. Foi justamente pensando numa alternativa a isso que começamos a desenhar Veoveo.
O primeiro passo foi observar e comparar. Em nossa infância tinha o que tinha, no tempo que tinha. Hoje temos muito do mesmo, em grandes quantidades, em qualquer momento, e de qualquer jeito. A escassez de antes exigia momentos de compartilhamento e espera. Duas qualidade importantes para serem desenvolvidas numa criança, a generosidade e a paciência. Sem paciência e acostumados ao mundo do seu jeito, dizer não ganhou peso. Muitos adultos, querendo evitar o conflito e silenciar a infância delegam a missão de educar a uma tela. Só que a tela não educa, a tela forma, ou informa, cria os contornos, que não são percebidos pelo indivíduo como contorno ou a impressão de conhecimento, o recheio. Portanto, a tela não cria o conjunto de experiência que o mundo real e as relações criam, que uma educação viva e dialética cria.
Dizer não virou um desafio, principalmente para os adultos que cada vez mais distantes dos universos das crianças e dos conteúdos infantis não conseguem oferecer o diferente. Mas, como diria o alto executivo daquele famoso canal – “ as crianças são exigentes e sabem o que querem, por isso elas gostam do meu canal”. Sim! Elas querem chocolate, e é missão dos pais, mães e adultos minimamente atentos ofertarem o diferente. Não é à toa que estamos vivendo um tempo de fome e obesidade.
Com isso, desenvolver o olhar é preciso, conhecer minimamente a linguagem parece ser o caminho para perder o medo de se aventurar em acervos e conteúdos não navegados. Perceber que o conceito de qualidade não pode ficar preso ao ultra realismo dos 3Ds ou aos movimentos frenéticos e gags bem construídas dos cartoons. Para resgatar as crianças das mesmices é preciso aumentar nosso repertório e a capacidade de reconhecer e perceber as muitas maneiras de se contar histórias.
A indústria do audiovisual, como qualquer indústria corre atrás da fórmula do sucesso e encontrou nos sistemas da internet um perigoso aliado. O mapeamento dos hábitos e a constatação do consumo automático aprofunda a oferta de conteúdos preocupados apenas em atender expectativas. O resultado é o que estamos vendo, conteúdos ordinários, e um sistema viciado que nivela a criação por baixo. Conseguimos algum respiro garimpando conteúdos fora das grande plataformas de streaming, dos grandes circuitos de salas de cinema, ou dos grandes canais. Em Veoveo buscamos por criadores que expressam em seus conteúdos seus anseios, inquietudes e sua visão de mundo. Não são muitos, mas os poucos que persistem fazem toda a diferença e irão enriquecer o olhar das nossas crianças.
Por último, a chave não é o radicalismo e criar a criança numa bolha de conteúdos “cabeça”. Os conteúdos de sucesso criam um código e a sensação de pertencimento típico da comunicação de massa. A chave é assistir juntos, ritualizar, tornar o ato de assistir uma experiência de surpresa, encantamento e conversa.
Esperamos que desfrutem de Veoveo, nós adoramos todos os filmes que estão aqui.
Homenageado da Ciranda Cirandinha de Filmes, o pai do Menino Maluquinho das telonas defende o cinema anticonsumo e as histórias que tratam as crianças de igual para igual
Franz Kafka, Walt Disney, Gabriel García Márquez. O que esses nomes têm em comum? A vocação para contar histórias. Na cabeça de Helvécio Ratton, eles se tornam ingredientes de uma mistura sempre urgente: a ficção e a vida. “O que me interessa no fantástico é quando ele se encontra com o cotidiano”, ele afirma.
Se é verdade que a arte é aquilo que “nunca termina de dizer o que tem para dizer” — como bem disse o escritor Ítalo Calvino –, Ratton, do alto de seus 71 anos e uma extensa trajetória fílmica, está aí para testemunhar esse fato. Ou melhor, aqui. O diretor e roteirista é o homenageado da Ciranda Cirandinha de Filmes 2020.
Para ele, que afirma estar bastante feliz com a homenagem, a honra dessa celebração à sua obra está no fato de que tanto a mostra quanto os trabalhos que ele já produziu compartilham a mesma opinião sobre a criança: o de que ela precisa ser respeitada em sua inteligência, sua sensibilidade, seus medos e fragilidades. Para falar sobre isso, ele cunhou dois termos que se contrapõem: “espectador de luxo” e “consumidor de lixo”. Para ele, a criança está no primeiro grupo, mas muitas vezes é tratada como se fosse o segundo.
Autor de um dos clássicos infantis mais incontornáveis da filmografia brasileira, o longa “O menino maluquinho” (1995) de obras memoráveis do audiovisual brasileiro, como Dança dos bonecos (1986) e “Uma onda no ar” (2002), ele conversou com a gente sobre fazer cinema no Brasil pandêmico, sobre o fantástico, a ficção e a infância.
Na sua fala, entrecortada pela angústia de todo artista que se vê incumbido do desafio de reinventar meios para existir em meio ao desmonte do aparato cultural do país, o cineasta continua criando, e se apega ao essencial: “toda obra é sonho, né?”, ele confabula. A resposta só poderia ser sim.
Com uma sensibilidade enérgica que celebra a arte sem deixar de criticar o que dela perdemos quando nos condicionamos a um olhar mercadológico, ele afirma que “cinema infantil não é para vender nada para a criança, é para contar uma história”.
Antes de mais nada, o problema está no nome, segundo o diretor. Ele rejeita o próprio termo “infantil” na hora de categorizar a produção artística dirigida às crianças. À frente da produtora Quimera Filmes, ao lado de sua parceira Simone Matos, conhecida por realizar o que ele chama de “cinema para todos”, ele parece concordar em tudo com a escritora Ana Maria Machado, quando ela defendia que, quando o assunto é arte, o que importa mesmo é o substantivo, e não o adjetivo.
“Eu tenho muito pouca atração pelos adjetivos. O Drummond dizia isso sempre, quando ficava na dúvida entre um adjetivo e outro, colocava um substantivo. E eu penso assim também”, diz. Assim, o que se convencionou chamar de “cinema infantil” seria, na verdade, aquele cinema que inclui também a criança, mas não só. “Quem faz um filme, tem que se relacionar com a plateia inteira, para que aquele filme seja uma viagem compartilhada entre o adulto e a criança. Por isso eu sempre pensei mais em filmes para ver com as crianças do que em filmes para crianças”, afirma.
Cinema para sonhar, não para consumir
Uma das criações mais famosas de Helvécio, e também seu primeiro filme, é o longa-metragem “A dança dos bonecos” (1986). Produzido pelo Grupo Novo de Cinema e TV, o filme é um marco na carreira do cineasta, não só por ter sido premiado no Brasil e no exterior dentre as melhores produções para a infância e a juventude, mas também por representar a preocupação de quem começou a fazer cinema dito “infantil” para oferecer às filhas ainda pequenas alternativas ao audiovisual norte-americano.
“Eu sentia que eram produções mal cuidadas, que tinham muito mais interesse em vender produtos derivados dos filmes para as crianças do que de fato contar uma história para elas. Isso deixa de tratar a criança como um espectador de luxo para tratá-la como consumidora de lixo”, explica o diretor.
Na história do longa em questão, três bonecos de uma menina chamada Ritinha são roubados por um artista saltimbanco, até que acabam indo parar nas mãos de um fabricante de brinquedos. Estava já aí uma das faíscas que acendem o trabalho de Ratton: a preocupação em colocar o cinema como arte, ou seja, como produto da fantasia e do sonho de alguém, e não do sistema econômico-capitalista. “A magia não pode ser reproduzida em série, não se fabrica industrialmente”, defende Ratton.
“Eu entrei no realismo fantástico por causa dos meus filmes infantis”, conta o cineasta. “A magia é algo que me encanta. Mas eu gosto dela integrada a um contexto realista, de cotidiano da gente. Acho que ela surpreende muito mais quando funciona dessa maneira. Por isso eu me sinto mais próximo do universo do Kafka do que de García Márquez. Um lugar onde não é o absurdo que choca, mas sim a condição do absurdo naquele contexto”, explica.
Um Brasil de meninos impossíveis
“Maluquinho estreou há 25 anos e nunca mais parou de ser visto”. É assim que Helvecio define a potência da história do “menino que tinha o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés”, como diz o texto de Ziraldo.
Quarentão, o personagem foi conquistando novas gerações de forma ininterrupta, e está mais jovem do que nunca, nesses tempos que parecem clamar por um retorno à simplicidade das ruas de paralelepípedo onde se pode brincar de bente altas. Com sua característica panela na cabeça, o que o menino mais famoso do cinema brasileiro teria a nos dizer hoje?
Em uma das primeiras cenas do filme, quando o pai e a mãe do personagem são convocados à escola por conta de uma travessura de Maluquinho, o zelador e a varredora do pátio parecem anunciar essa tal de infância e sua eterna relação com o bagunçar das coisas. “Ainda não se acostumaram com as artes do menino”, ela diz. “É por isso que ele é assim: um menino impossível” – responde o zelador. Triste é pensar que, hoje em dia, as crianças no Brasil ainda precisam guardar em outro lugar sua impossibilidade de ser: na violência urbana, no trabalho infantil, no retrato da desigualdade.
O filme “O menino Maluquinho” será exibido na Ciranda Cirandinha de Filmes. Após a exibição, haverá um bate-papo com o diretor.
Inspirado no livro homônimo do escritor Ziraldo — cuja primeira edição, publicada em 1980, completa 40 anos em 2020 –, o filme é um marco afetivo e um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional. O longa atravessou gerações, mantendo firme sua atualidade como um símbolo do “menino que todos sonhamos em ter sido”.
Já as quatro décadas de vida do Maluquinho de Ziraldo será celebrada em grande estilo, com uma reedição especial do livro pela editora Melhoramentos, com textos sobre o livro, curiosidades sobre o autor e sobre a trajetória internacional da obra.
Tanta comemoração em torno de um enredo tão aparentemente prosaica não é sem motivo. Se fôssemos investigar os porquês, chegaríamos não a uma, mas a múltiplas justificativas, como a universalidade do tema, a simplicidade da narrativa, o humor, a identificação das crianças com os personagens.
De todos os diversos motivos metidos a explicadores, no entanto, ficamos aqui com a afirmação que Helvécio soltou nesta entrevista à Cirandinha: “Essa infância de anos atrás se transformou numa espécie de infância imaginária. A força do filme vem daí também, em situar a infância no lugar da imaginação”. Isso porque o Maluquinho retratado no cinema representa uma espécie de símbolo da criança ideal.
Nascido em uma família de classe média, Maluquinho tem uma família presente, um teto seguro, acesso à escola, convívio social saudável e, principalmente, liberdade de ser. Essa realidade protegida e confortável ainda é privilégio de minorias no Brasil.
Para Helvécio, é como se essa infância que pode brincar na rua, descer ladeiras de carrinho de rolemã e contar com o olhar atento dos vizinhos para zelar pelo seu bem-estar tivesse ficado congelada em uma utopia possível apenas em outros tempos. Como diz a canção-tema do filme, de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant, “o tempo do Menino Maluquinho é um tempo que existe só na infância”.
“A ideia principal dessa história é mostrar que o Maluquinho se tornou um adulto legal porque teve uma infância feliz, então, o que o filme faz é contar como foi essa infância. Mais do que uma adaptação do livro, o filme é um complemento dele”, afirma Helvécio, abrindo as brechas para pensar que criança é essa que encontramos neste Brasil 2020, tão marcado por violências de diversas naturezas contra a infância.
Não por acaso, a violência sexual infantil está no centro do projeto que Helvécio estava desenvolvendo pré-pandemia. Ainda em fase de desenvolvimento, trata-se da adaptação de uma novela gráfica chilena chamada “No abuses de este libro”, de autoria de Natichuleta. O enredo é sobre uma menina abusada sexualmente pelo padrasto dos 8 aos 12 anos. Após processá-lo na justiça, contra a vontade mãe, ela consegue dar a volta por cima, e resolve se vingar dele contando a história em uma HQ. “Ela cria uma super-heroína que invoca nos momentos de abuso. Ou seja, na imaginação, ela tem o problema resolvido, mas, na realidade, não”, conta o cineasta. Ratton trabalhou na roteirização do projeto baseado no livro, chamado “Só não posso dizer o nome”. O filme ainda não foi rodado.
A produção mais recente de Helvécio Ratton está em cartaz na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa-metragem “O lodo”, realizado pela Quimera Filmes. Dirigido ao público adulto, o filme trabalha a linguagem do realismo fantástico para acompanhar a jornada de um homem sozinho e sem filhos que se vê mergulhado na própria banalidade.
Para 2021, a plataforma de streaming Netflix anunciou uma série animada com novas aventuras do personagem Menino Maluquinho, com realização da produtora Chatrone.
A literatura e o cinema
Não é de hoje a proximidade de Helvécio Ratton com a literatura. Além de “O menino Maluquinho”, outros trabalhos seus são adaptações de obras literárias. É o caso de “Amor & Cia”, baseado no livro “Alves & Companhia”, de Eça de Queirós, e até mesmo de “Batismo de sangue”, inspirado no livro de mesmo nome de Frei Betto – este último mais um relato de experiência do que uma leitura literária; um retrato da ditadura militar brasileira nos anos 60 e 70.
Colecionador de histórias em quadrinhos, ele se diz um apaixonado por essa outra forma de arte sequencial, diferente do cinema, e deposita na literatura a exclusividade de contar algumas histórias. Para ele, algumas adaptações, mais do que difíceis, são mesmo impossíveis, como Guimarães Rosa, que ele exemplifica. “Tem algo específico da linguagem da literatura que é intraduzível. Há o lugar da literatura, e ele é único”, defende.
“Até mais do que o cinema, a literatura é a melhor forma de contar histórias. O que a criança acha que está faltando ali, é a imaginação dela que completa. Isso vale também para os filmes: não podemos preencher completamente a imaginação da criança, mas sempre deixar um espaço para que ela possa continuar no imaginário dela”, diz Helvécio. Questionado sobre qual é o seu filme infantil preferido de todos os tempos, ele cita “O mágico de Oz” (1939), adaptação do clássico literário infantil de Frank Baum, “The wonderful wizard of Oz” (1900).
A pandemia que empobrece a infância
Pai e avô, Helvécio conclui a conversa com a Ciranda de Filmes mencionando o impacto da pandemia no processo de socialização e desenvolvimento das crianças. Do alto de quem já viu de perto uma infância que brinca solta na calçada de casa, ele se preocupa com as consequências desses primeiros anos de vida vividos entre telas e aparatos tecnológicos. “O isolamento tem sido muito duro para as crianças. A perda do brincar junto é algo muito sério. O fato de que elas só têm usado tablets, celulares e computador para se relacionar com os outros está empobrecendo muito a vida”, diz.
A violência a que se refere Helvécio parece ser inimiga da fabulação e da magia, que tanto engrandecem a nossa humanidade adormecida. Quando o assunto é o vírus que parou o mundo todo em 2020, não custa lembrar que “virulento”, dentro e fora dos dicionários, continua sendo sinônimo do que também é violento. Apesar de tudo, “O Menino Maluquinho”, “A Dança dos Bonecos” e muitos outros de seus filmes-convite continuam em seu eterno posto de inventores de futuro na História viva do audiovisual brasileiro. São eles que nos lembram que, se hoje as coisas não estão como gostaríamos, bom mesmo é continuar sonhando. E “tudo o que é bom é brincadeira”.
animação, Brasil, 2013, 98 min, 12 anos sugestão: 12+
“Uma História de Amor e Fúria” é um filme de animação que retrata o amor entre um herói imortal e Janaína, a mulher por quem é apaixonado há 600 anos. Como pano de fundo do romance, o longa de Luiz Bolognesi ressalta quatro fases da história do Brasil: a colonização, a escravidão, o Regime Militar e o futuro, em 2096, quando haverá guerra pela água.
Uma menina de sete anos passa um fim de semana na casa da sua avó, no campo. Ela está com medo da pele enrugada da avó e imagina a velhinha como se fosse uma grande árvore nodosa. A pequena terá que superar seu medo para estar perto da avó.
animação, Brasil, 2014, 18 min, livre sugestão: 7+
História de uma menina escrava no Século XIX. Naquele tempo, homens brancos buscavam negros na África para vendê-los como escravos. Três princesas africanas, e sua pequena irmã, um dia foram aprisionadas na África e levadas para uma terra muito distante. Baseado em livro homônimo de Angela Lago.
“Atrapasueños” mostra o mundo mágico das crianças, seu contexto e a riqueza da diversidade étnica e cultural do país. O menino indígena sonha com a magia da cosmovisão andina; o menino da Amazônia sonha com lagartos e animais selvagens; o menino da costa com leões selvagens. Essas histórias são recriadas, ilustradas e animadas artisticamente. Nesse capítulo, Verito, uma menina da costa, retrata seus arredores.
Conteúdo vencedor do Festival comKids Prix Jeunesse Iberoamericano 2017
documentário, Chile e Peru, 2015, 45 min, livre sugestão: 7+
“Sueños Latinoamericanos” é uma série documental que mostra os contrastes e a diversidade da América Latina através da vida de meninos e meninas de diferentes países. No episódio, é retratado Emiliano, um menino camponês peruano cuja família realiza todos os esforços para que ele possa estudar e ter um futuro melhor. Durante a semana, vive junto com sua mãe, na cidade de Cajamarca, onde vai à escola. Nos finais de semana, ele volta à sua casa, que fica em Puruay Alto.
Citlalli tinha 13 anos e, havia dois anos, tinha criado o projeto “Coloque pilhas e te dou uma semente”, na delegação de Iztapalapa (México). Sua história começou quando, uma vez, não permitiram que a menina instalasse um porta-pilhas nas instalações de um edifício. Ao final, a ação de Citlalli fez com que esses tipos de depósitos fossem colocados em toda a região.
Senha Verde é uma série audiovisual que mostra iniciativas infantis para proteger o meio ambiente em diferentes países da América Latina. Neste capítulo, aprendemos a história de Yohangel, um jovem venezuelano que resgata pequenas tartarugas das praias para que possam crescer e se desenvolver longe da ameaça de humanos e predadores até que sejam devolvidas ao seu habitat.