Por Renata Penzani
Homenageado da Ciranda Cirandinha de Filmes, o pai do Menino Maluquinho das telonas defende o cinema anticonsumo e as histórias que tratam as crianças de igual para igual
Franz Kafka, Walt Disney, Gabriel García Márquez. O que esses nomes têm em comum? A vocação para contar histórias. Na cabeça de Helvécio Ratton, eles se tornam ingredientes de uma mistura sempre urgente: a ficção e a vida. “O que me interessa no fantástico é quando ele se encontra com o cotidiano”, ele afirma.
Se é verdade que a arte é aquilo que “nunca termina de dizer o que tem para dizer” — como bem disse o escritor Ítalo Calvino –, Ratton, do alto de seus 71 anos e uma extensa trajetória fílmica, está aí para testemunhar esse fato. Ou melhor, aqui. O diretor e roteirista é o homenageado da Ciranda Cirandinha de Filmes 2020.
Para ele, que afirma estar bastante feliz com a homenagem, a honra dessa celebração à sua obra está no fato de que tanto a mostra quanto os trabalhos que ele já produziu compartilham a mesma opinião sobre a criança: o de que ela precisa ser respeitada em sua inteligência, sua sensibilidade, seus medos e fragilidades. Para falar sobre isso, ele cunhou dois termos que se contrapõem: “espectador de luxo” e “consumidor de lixo”. Para ele, a criança está no primeiro grupo, mas muitas vezes é tratada como se fosse o segundo.
Autor de um dos clássicos infantis mais incontornáveis da filmografia brasileira, o longa “O menino maluquinho” (1995) de obras memoráveis do audiovisual brasileiro, como Dança dos bonecos (1986) e “Uma onda no ar” (2002), ele conversou com a gente sobre fazer cinema no Brasil pandêmico, sobre o fantástico, a ficção e a infância.
Na sua fala, entrecortada pela angústia de todo artista que se vê incumbido do desafio de reinventar meios para existir em meio ao desmonte do aparato cultural do país, o cineasta continua criando, e se apega ao essencial: “toda obra é sonho, né?”, ele confabula. A resposta só poderia ser sim.
Com uma sensibilidade enérgica que celebra a arte sem deixar de criticar o que dela perdemos quando nos condicionamos a um olhar mercadológico, ele afirma que “cinema infantil não é para vender nada para a criança, é para contar uma história”.
Antes de mais nada, o problema está no nome, segundo o diretor. Ele rejeita o próprio termo “infantil” na hora de categorizar a produção artística dirigida às crianças. À frente da produtora Quimera Filmes, ao lado de sua parceira Simone Matos, conhecida por realizar o que ele chama de “cinema para todos”, ele parece concordar em tudo com a escritora Ana Maria Machado, quando ela defendia que, quando o assunto é arte, o que importa mesmo é o substantivo, e não o adjetivo.
“Eu tenho muito pouca atração pelos adjetivos. O Drummond dizia isso sempre, quando ficava na dúvida entre um adjetivo e outro, colocava um substantivo. E eu penso assim também”, diz. Assim, o que se convencionou chamar de “cinema infantil” seria, na verdade, aquele cinema que inclui também a criança, mas não só. “Quem faz um filme, tem que se relacionar com a plateia inteira, para que aquele filme seja uma viagem compartilhada entre o adulto e a criança. Por isso eu sempre pensei mais em filmes para ver com as crianças do que em filmes para crianças”, afirma.
Cinema para sonhar, não para consumir
Uma das criações mais famosas de Helvécio, e também seu primeiro filme, é o longa-metragem “A dança dos bonecos” (1986). Produzido pelo Grupo Novo de Cinema e TV, o filme é um marco na carreira do cineasta, não só por ter sido premiado no Brasil e no exterior dentre as melhores produções para a infância e a juventude, mas também por representar a preocupação de quem começou a fazer cinema dito “infantil” para oferecer às filhas ainda pequenas alternativas ao audiovisual norte-americano.
“Eu sentia que eram produções mal cuidadas, que tinham muito mais interesse em vender produtos derivados dos filmes para as crianças do que de fato contar uma história para elas. Isso deixa de tratar a criança como um espectador de luxo para tratá-la como consumidora de lixo”, explica o diretor.
Na história do longa em questão, três bonecos de uma menina chamada Ritinha são roubados por um artista saltimbanco, até que acabam indo parar nas mãos de um fabricante de brinquedos. Estava já aí uma das faíscas que acendem o trabalho de Ratton: a preocupação em colocar o cinema como arte, ou seja, como produto da fantasia e do sonho de alguém, e não do sistema econômico-capitalista. “A magia não pode ser reproduzida em série, não se fabrica industrialmente”, defende Ratton.
“Eu entrei no realismo fantástico por causa dos meus filmes infantis”, conta o cineasta. “A magia é algo que me encanta. Mas eu gosto dela integrada a um contexto realista, de cotidiano da gente. Acho que ela surpreende muito mais quando funciona dessa maneira. Por isso eu me sinto mais próximo do universo do Kafka do que de García Márquez. Um lugar onde não é o absurdo que choca, mas sim a condição do absurdo naquele contexto”, explica.
Um Brasil de meninos impossíveis
“Maluquinho estreou há 25 anos e nunca mais parou de ser visto”. É assim que Helvecio define a potência da história do “menino que tinha o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés”, como diz o texto de Ziraldo.
Quarentão, o personagem foi conquistando novas gerações de forma ininterrupta, e está mais jovem do que nunca, nesses tempos que parecem clamar por um retorno à simplicidade das ruas de paralelepípedo onde se pode brincar de bente altas. Com sua característica panela na cabeça, o que o menino mais famoso do cinema brasileiro teria a nos dizer hoje?
Em uma das primeiras cenas do filme, quando o pai e a mãe do personagem são convocados à escola por conta de uma travessura de Maluquinho, o zelador e a varredora do pátio parecem anunciar essa tal de infância e sua eterna relação com o bagunçar das coisas. “Ainda não se acostumaram com as artes do menino”, ela diz. “É por isso que ele é assim: um menino impossível” – responde o zelador. Triste é pensar que, hoje em dia, as crianças no Brasil ainda precisam guardar em outro lugar sua impossibilidade de ser: na violência urbana, no trabalho infantil, no retrato da desigualdade.
O filme “O menino Maluquinho” será exibido na Ciranda Cirandinha de Filmes. Após a exibição, haverá um bate-papo com o diretor.
Inspirado no livro homônimo do escritor Ziraldo — cuja primeira edição, publicada em 1980, completa 40 anos em 2020 –, o filme é um marco afetivo e um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional. O longa atravessou gerações, mantendo firme sua atualidade como um símbolo do “menino que todos sonhamos em ter sido”.
Já as quatro décadas de vida do Maluquinho de Ziraldo será celebrada em grande estilo, com uma reedição especial do livro pela editora Melhoramentos, com textos sobre o livro, curiosidades sobre o autor e sobre a trajetória internacional da obra.
Tanta comemoração em torno de um enredo tão aparentemente prosaica não é sem motivo. Se fôssemos investigar os porquês, chegaríamos não a uma, mas a múltiplas justificativas, como a universalidade do tema, a simplicidade da narrativa, o humor, a identificação das crianças com os personagens.
De todos os diversos motivos metidos a explicadores, no entanto, ficamos aqui com a afirmação que Helvécio soltou nesta entrevista à Cirandinha: “Essa infância de anos atrás se transformou numa espécie de infância imaginária. A força do filme vem daí também, em situar a infância no lugar da imaginação”. Isso porque o Maluquinho retratado no cinema representa uma espécie de símbolo da criança ideal.
Nascido em uma família de classe média, Maluquinho tem uma família presente, um teto seguro, acesso à escola, convívio social saudável e, principalmente, liberdade de ser. Essa realidade protegida e confortável ainda é privilégio de minorias no Brasil.
Para Helvécio, é como se essa infância que pode brincar na rua, descer ladeiras de carrinho de rolemã e contar com o olhar atento dos vizinhos para zelar pelo seu bem-estar tivesse ficado congelada em uma utopia possível apenas em outros tempos. Como diz a canção-tema do filme, de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant, “o tempo do Menino Maluquinho é um tempo que existe só na infância”.
“A ideia principal dessa história é mostrar que o Maluquinho se tornou um adulto legal porque teve uma infância feliz, então, o que o filme faz é contar como foi essa infância. Mais do que uma adaptação do livro, o filme é um complemento dele”, afirma Helvécio, abrindo as brechas para pensar que criança é essa que encontramos neste Brasil 2020, tão marcado por violências de diversas naturezas contra a infância.
Não por acaso, a violência sexual infantil está no centro do projeto que Helvécio estava desenvolvendo pré-pandemia. Ainda em fase de desenvolvimento, trata-se da adaptação de uma novela gráfica chilena chamada “No abuses de este libro”, de autoria de Natichuleta. O enredo é sobre uma menina abusada sexualmente pelo padrasto dos 8 aos 12 anos. Após processá-lo na justiça, contra a vontade mãe, ela consegue dar a volta por cima, e resolve se vingar dele contando a história em uma HQ. “Ela cria uma super-heroína que invoca nos momentos de abuso. Ou seja, na imaginação, ela tem o problema resolvido, mas, na realidade, não”, conta o cineasta. Ratton trabalhou na roteirização do projeto baseado no livro, chamado “Só não posso dizer o nome”. O filme ainda não foi rodado.
A produção mais recente de Helvécio Ratton está em cartaz na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa-metragem “O lodo”, realizado pela Quimera Filmes. Dirigido ao público adulto, o filme trabalha a linguagem do realismo fantástico para acompanhar a jornada de um homem sozinho e sem filhos que se vê mergulhado na própria banalidade.
Para 2021, a plataforma de streaming Netflix anunciou uma série animada com novas aventuras do personagem Menino Maluquinho, com realização da produtora Chatrone.
A literatura e o cinema
Não é de hoje a proximidade de Helvécio Ratton com a literatura. Além de “O menino Maluquinho”, outros trabalhos seus são adaptações de obras literárias. É o caso de “Amor & Cia”, baseado no livro “Alves & Companhia”, de Eça de Queirós, e até mesmo de “Batismo de sangue”, inspirado no livro de mesmo nome de Frei Betto – este último mais um relato de experiência do que uma leitura literária; um retrato da ditadura militar brasileira nos anos 60 e 70.
Colecionador de histórias em quadrinhos, ele se diz um apaixonado por essa outra forma de arte sequencial, diferente do cinema, e deposita na literatura a exclusividade de contar algumas histórias. Para ele, algumas adaptações, mais do que difíceis, são mesmo impossíveis, como Guimarães Rosa, que ele exemplifica. “Tem algo específico da linguagem da literatura que é intraduzível. Há o lugar da literatura, e ele é único”, defende.
“Até mais do que o cinema, a literatura é a melhor forma de contar histórias. O que a criança acha que está faltando ali, é a imaginação dela que completa. Isso vale também para os filmes: não podemos preencher completamente a imaginação da criança, mas sempre deixar um espaço para que ela possa continuar no imaginário dela”, diz Helvécio. Questionado sobre qual é o seu filme infantil preferido de todos os tempos, ele cita “O mágico de Oz” (1939), adaptação do clássico literário infantil de Frank Baum, “The wonderful wizard of Oz” (1900).
A pandemia que empobrece a infância
Pai e avô, Helvécio conclui a conversa com a Ciranda de Filmes mencionando o impacto da pandemia no processo de socialização e desenvolvimento das crianças. Do alto de quem já viu de perto uma infância que brinca solta na calçada de casa, ele se preocupa com as consequências desses primeiros anos de vida vividos entre telas e aparatos tecnológicos. “O isolamento tem sido muito duro para as crianças. A perda do brincar junto é algo muito sério. O fato de que elas só têm usado tablets, celulares e computador para se relacionar com os outros está empobrecendo muito a vida”, diz.
A violência a que se refere Helvécio parece ser inimiga da fabulação e da magia, que tanto engrandecem a nossa humanidade adormecida. Quando o assunto é o vírus que parou o mundo todo em 2020, não custa lembrar que “virulento”, dentro e fora dos dicionários, continua sendo sinônimo do que também é violento. Apesar de tudo, “O Menino Maluquinho”, “A Dança dos Bonecos” e muitos outros de seus filmes-convite continuam em seu eterno posto de inventores de futuro na História viva do audiovisual brasileiro. São eles que nos lembram que, se hoje as coisas não estão como gostaríamos, bom mesmo é continuar sonhando. E “tudo o que é bom é brincadeira”.