Olhares
(Trans)bordar feito água de riacho
31/03/2017
As sabenças compartilhadas ao pé do fogão, as brincadeiras nos rios-riachos da infância, as memórias desenhadas nas calçadas da rua com pedrinhas do fundo dos córregos, entre muitas outras lembranças do quintal, alimentam o imaginário do grupo Matizes Dumont, formado por uma família mineira que há gerações borda intensamente suas narrativas de origens.
São cinco irmãos: Marilu, Demóstenes, Ângela, Martha e Sávia Dumont, todos descendentes de Antônia, a bordadeira-mãe que ampliou ainda mais o imaginário dos filhos com as tessituras feitas nas barras de vestido, nos lençóis que cobriam à noite as crianças, nas toalhas de mesa que enfeitavam a casa em dia de visita. Dizem eles que seus sonhos “ainda são povoados por pássaros, flores, borboletas, cavalinhos, meninos, barcas, bonecas de pano, carros de boi e noites estreladas”. E é esse sonhar cheio de singelezas que nutre as artes da 4ª Ciranda de Filmes.
O bordado fortalece. Transforma o adulto em criança pequena, árvore, bicho ou até rio, agigantado como o São Francisco que banhou a infância dos Dumont. “Ao bordar, a pessoa pode retomar os fios da memória do vivido, reencontrar espaços internos de amorosidade, experienciar situações de cooperação, perfazer gestos de sensibilidade e, quem sabe, começar de novo um viver na beleza, no reencontro do sentido de vida”, conta Marilu, que crê na formação humana como um bordado.
Cresceu numa família em que “os adultos bordam brincando e as crianças brincam de bordar”. A infância dela e dos irmãos foi tecida entre os bordados da mãe e os causos contados pelo pai da varanda de casa. Os “almanaques”, que chegavam sempre que se ouvia o apito do vapor, eram sempre aguardados. As linhas, agulhas e tecidos, primeiros brinquedos dos filhos, eram misturados àqueles feitos de sementes colhidas no quintal. A vida seguia com a batida do pilão, o barulho do sino da cabritinha no pasto, a cor das asas da juriti.
Da vivência, brotou o saber coletivo do ofício. “Um galo sozinho não tece uma manhã”, dizia João Cabral de Melo Neto. A bordadeira Marilu concorda: há três gerações são transmitidos ensinamentos, na “busca cotidiana de saber ser e saber fazer coletivamente”. E não só dentro de casa. As irmãs oferecem oficinas de bordado em diversos lugares do Brasil. Assim, o ofício é repassado, ensinado, preservado.
Colaborativo, a arte de bordar se assemelha aos fazeres da vida rural. Do mesmo modo se prepara a junta de bois que puxa o carro, para levar todos à festa de reis na beira do rio. Um completa a arte do outro, brincando com agulhas e linhas desde a meninice. Sim, o mais íntimo vem das origens: a fazenda habitada em Pirapora, norte de Minas Gerais, nas beiradas do rio São Francisco, o Velho Chico, onde a vida era de repleta encantamentos.
Toda inspiração brota da natureza de lá, suas cores e suas formas. “As filigranas das samambaias, as árvores encantadas que trocam de roupa a cada dia, a Via Láctea escandalosa sobre o céu refletido no rio São Francisco, as estrelas como que penduradas no pé de jatobá. Cor de manga rosa, gosto de jabuticaba no pé, doce quente de buriti no tacho de cobre.” Todos os fazeres manuais, o trabalhar da farinhada ou o preparar do melado para rapadura, são tecidos. E não só no pano, mas em todas as relações.
E as tramas que se iniciaram com os rabiscos dos toás – aquelas pedrinhas de calcários, do fundo dos córregos – transbordam ainda hoje nos coloridos fios. Assim, bordam bicho, árvore, pessoa. Bordam a história da vida, a morte e tudo o que há de humano. “Todos os rios têm uma história peculiar. O que a gente vai descobrindo é que as narrativas se entrelaçam, e aí que a gente vê que todos os rios são mesmo internos.” Gente faz é (trans)bordar.
Texto: Gabriela Romeu e Luísa Cortés
Imagem do bordado: grupo Matizes Dumont