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10/05/2019
Os sons que vêm do sertão
inda na madrugada de Bodocó, no sertão pernambucano, vários pássaros cabeças-vermelhas cantam escondido no meio de um umbuzeiro. Por ser época de umbu, eles acordam e se juntam para comer o fruto, fazendo uma festa enquanto o dia vem raiando. No nascer da manhã registrado no projeto Sonário do Sertão, a orquestra de sonoridades é tão bonita quanto a paisagem que se apresenta aos olhos – e que se apresentará nas instalações da Ciranda de Filmes 2019.
Tal sonário é um acervo de sons gravados pelo interior do país, trazendo três territórios do semiárido nordestino brasileiro: Várzea Nova (Jacobina, Bahia), Várzea Queimada (Caém, Bahia) e Bodocó (Pernambuco). O projeto começa com a técnica e desenhista de som Camila Machado ministrando oficinas de captação de áudio para crianças e adolescentes dessas regiões. Os sons captados depois se tornaram material para a oficina de edição de som e, então, expostas em instalações artísticas que envolveram toda a comunidade. Nesses encontros, surgiram maneiras diversas de escuta e produção de sons. Renderam uma colheita de mil registros sonoros que, aos poucos, vêm sendo classificados e indexados no site.
A inspiração para o projeto tem origem nas narrativas da tradição oral, aquelas passadas dos mais velhos aos mais novos: “As histórias têm no universo sonoro um ponto importante na transmissão de saber e também na criação do imaginário das populações sertanejas”. Em parceria com o Movimento dos Pequenos Agricultores,o qual promove uma luta pela permanência do camponês e suas histórias em suas terras, esse acervo de sons valoriza o patrimônio imaterial do sertão, contribuindo com essa luta. É por meio da cultura musical, dos relatos e da memória, das festas e da paisagem sonora que sertanejos e sertanejas afirmam sua identidade.
Assim, no atento registro do cotidiano do semiárido brasileiro, o sertão ecoa no canto dos pássaros, no som de carroças em movimento, nas sonoridades do entardecer, no cacarejar do galinheiro, nas orações de noitinha, nos cantos de trabalho, nas melodias assoviadas durante a plantação da mandioca e nas festas religiosas. As histórias narradas pelas anciãs e pelos anciãos sinalizam o quanto o contar e o cantar tornam-se uma coisa só nesses territórios. Tudo registrado por seus próprios protagonistas no projeto, que valorizou a participação da comunidade,principalmente, crianças e jovens, na construção de sua própria memória sonora.
E da memória, muitos sons ecoaram. “Seu Joaquim é um senhor cego, morador e fundador de Várzea Queimada que lembra de todos os versos e toda a história de sua comunidade. É por conta de sua memória que se conseguiu o registro de comunidade remanescente quilombola, pois sua cabeça e suas histórias são mais fortes do que papelada de cartório”, conta Camila. São palavras e vozes que trazem “a história da região, com detalhes que permitem que a gente imagine a vida toda”.
O registro dessa pluralidade de representações sonoras do patrimônio imaterial do sertão revela a memória coletiva de uma comunidade, permitindo, “desde as subjetividades individuais e suas intersecções com as respectivas culturas, construir coleções capazes de expressar esses universos”. Por conta de sua divulgação emmeio virtual, há uma valorização além daquela dentro da própria comunidade,permitindo que esses registros sonoros naveguem por outros locais e encontrem ouvidos de fora do sertão, sensibilizados pela sonoridade sertaneja.
Uma escuta atenta que permita ouvir essas paisagens e entender suas riquezas exige tempo, e há sons que nos convidam a entrar no tempo deles: “O que podemos fazer é aceitar esse convite e baixar a velocidade do cotidiano para poder escutar os sons ao nosso redor e nos conectarmos com eles. O tempo da escuta é um tempo de conexão, de união e encontro”. Respeitar esses encontros é fundamental para identificar as riquezas sonoras, entendê-las e valorizá-las – e, depois, saber dedicar seu tempo ouvindo o entardecer, os grilos, o vento nas palhas do coqueiro…
Texto: Carolina Tiemi/Estúdio VeredasFoto e sons: Sonário do Sertão