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10/08/2016

O voo da infância no cinema

“Quando saio com ele, alguém diz:
‘É Billy Casper e seu falcão de estimação’.
Eu fico doido. Ele não é um bicho de estimação.
Ou quando vem alguém é pergunta: “É domesticado?”
Falcões não podem ser domesticados.
Eles são ferozes e selvagens.”

Cabelos desgrenhados, fala por vezes sussurrada e olhar perdido no horizonte, Billy Casper é um menino franzino, amiudado por um entorno hostil, tanto em casa como na escola, um “verdadeiro inferno”. Num intenso desejo de se libertar de sua condição carcerária, mira da janela da sala de aula os rasantes dos pássaros no céu. Até que certo dia captura um filhote de falcão, que é alimentado e treinado com afinco pelo menino, que projeta no voo da ave o voo da própria infância.

É a arte do visível, o cinema, que nos introduz no mundo invisível de Billy Casper, protagonista de “Kes” (1969), filme de Ken Loach, que traz uma representação metafórica da infância que se rebela da domesticação empreendida pelo mundo adulto. “Falcões não podem ser domesticados”, nos alerta o menino inglês, em meio a uma paisagem insistentemente cinzenta.

Esse universo-menino vulnerável é desvelado pelo cineasta britânico por meio de gestos, olhares e silêncios (nada esvaziados de dizeres, falares ou pensares). O filme nos coloca cara a cara com um “comportamento de infância, seu movimento, sua corporalidade, sua gestualidade”, segundo o educador e filósofo Jorge Larossa. É que o cinema é a verdadeira “escritura do gesto”, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben.

Essa ânsia por liberdade é tema recorrente nos filmes que retratam a infância ou o universo infantil. Assim, Billy Casper vem de uma linhagem de meninos que desejam romper com uma infância carcerária, ou as masmorras do mundo adulto. São meninos como o emblemático Antoine Doinel, de “Os Incompreendidos” (1959), obra de François Truffaut, cineasta para quem “nada é pequeno no que se refere à infância”.

Sim, o cinema tem muito a nos contar sobre a infância, a criança e o universo infantil em diferentes épocas, nacionalidades e culturas, com temas, perspectivas e concepções diferentes. São muitos os filmes que revelam o olhar genuíno das crianças e sua persistência poética diante da aridez do mundo, além de situações de vulnerabilidade, como abandono e violência.

Desde os primórdios do cinema, as crianças sempre estiveram presentes na telona. O menininho órfão de “O Garoto” (1921) e o bebê abandonado no carrinho que desce a escadaria em “O Encouraçado Potemkin” (1925) são só alguns exemplos da presença infantil nas narrativas cinematográficas das primeiras décadas do século 20.

Ao longos dos tempos, as crianças foram ganhando espaço e protagonizando suas histórias. Ainda assim, vemos muitos filmes em que meninos e meninas protagonistas figuram mais como uma “paisagem de infância”. Daria para dizer que estão tão grandes na telona quanto distantes da essência infantil.

São muitos os cineastas que nos levaram ao universo da infância pelas aventuras e desventuras de pequenos protagonistas – Carlos Saura, Abbas Kiarostami, François Truffaut, Louis Malle, Theodoros Angelopoulos, Roberto Rossellini, Walter Salles, Guillermo Del Toro, Ingmar Bergman, Wes Anderson e tantos outros. Ou, como diria Andrei Tarkovski, diretor dos clássicos “A Infância de Ivan” (1962) e “O Espelho” (1975), não é exatamente um retorno “ao território perdido da infância”, pois “talvez nunca tenhamos saído dele”.

Retorno ou não ao “território perdido da infância”, o cinema estabelece pontes entre o universo adulto e o mundo da criança. É a arte que nos desafia a ver o quanto nos distanciamos desse outro que também já fomos. Lança um olhar atento para a criança, que também nos olha. Para o crítico André Bazin, o olhar da criança “nos enfrenta (…), nos interroga, nos interpela, pede resposta muitas vezes”. E diz isso muitas vezes entre silêncios.

Segundo Sonia Krammer, no prefácio do livro “A Infância Vai ao Cinema”, encontramos na telona “ora um outro modo de conhecer as crianças, ora a expressão do mundo da maneira como as crianças veem, escutam e experimentam, ora um olhar infantil que pode ajudar a compreender o mundo e a subvertê-lo”.

Subverter o mundo. Eis uma das imagens mais fortes da infância no cinema. Um filme que bem ilustra tal questão é “Zero de Conduta” (1933), uma poesia selvagem do cineasta francês Jean Vigo que virou maldito e ficou proibido de ser exibida na França até 1946. Emblemático, o filme é considerado uma das poucas obras com olhar realmente subversivo para a infância; dificilmente seria feito nos dias de hoje. E tem as cenas de mais pura poesia subversiva da infância.

O filme traz um grupo de quatro meninos – Caussat, Bruel, Colin e Tabard, alter ego de Vigo – que se rebela contra o sistema repressivo e as rígidas regras de um colégio interno francês em um dia festivo. Numa atmosfera surreal, os meninos são bem sucedidos na rebelião e triunfam no telhado, numa cena que parece que vão alçar voo. O mesmo voo que representa a ânsia de de liberdade de Billy Casper, protagonista de “Kes”.

Que o cinema continue nos “emprestando” os olhos das crianças para que a gente possa enxergar melhor o mundo – e, claro, a subvertê-lo.

Texto: Gabriela Romeu, que, em parceria com Adriana Costa, desenvolveu a oficina Imagenário da Infância, que estreou na Ciranda de Filmes, em 2016, e segue circulando com outras discussões sobre cinema e infância. Nas imagens abaixo, um registro do encontro.