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15/04/2019
Eduardo Coutinho: canto no escuro
O cinema de Eduardo Coutinho (1933-2014) se constrói em dois tons: o de sua voz e o da voz de seu interlocutor. Assim, a partir de um emaranhado multivocal, um conjunto de poucas notas e acordes descomplicados concebe uma sinfonia. O falar e o ouvir, a voz e o ouvido, aos pares, comandando partes de uma narrativa que tem geralmente como foco as histórias banais de personagens comuns.
Assim como em “As Canções”, filme integrante da Ciranda de Filmes 2019, longa-metragem em que homens e mulheres anônimos contam e cantam músicas que marcaram suas vidas.
No filme, o penúltimo filme que dirigiu e o último que finalizou, três anos antes de sua morte, em 2011, o cineasta chega melodicamente a algumas histórias sobre amores, saudades e perdas, depois de uma pesquisa, uma escuta atenta e cuidadosa, envolvendo 237 homens e mulheres, com idades entre 22 e 82 anos, em diferentes localidades do Rio de Janeiro, do Largo da Carioca ao Leblon, do Arpoador ao Morro da Babilônia, da Feira de São Cristóvão a Ipanema.
O cenário, o mesmo já aproveitado em Jogo de cena (2007), o palco de um teatro, é pensado para criar uma outra atmosfera, evidenciando uma nova versão de Coutinho. Totalmente em preto, o plano de fundo dos depoimentos põe em destaque os entrevistados. Atrás das câmeras, o diretor se coloca mais participativo na narrativa. Nem tanto orientado a contestar a fala dos personagens, permite-se ser envolvido por aquelas palavras, por vezes cantaroladas. É como explica Fábio Andrade em O canto dos mortos – As canções de Eduardo Coutinho: “O Coutinho de As canções não mais acentua as lacunas no relato do entrevistado; ao contrário, ele se instala nelas […]”.
Como exemplo poderia ser citado o momento quando ele completa a música de Noel Rosa que a personagem Déa cantava e da qual esqueceu um trecho da letra. Ou, ainda, quando deixa escapar um canto baixinho de Fascinação junto com outra personagem, Maria Aparecida. Além delas, outros quinze protagonistas se apresentam no palco, onde compartilham histórias ligadas a grandes amores, relembram o remorso de palavras não ditas. Alguns só cantam, sem ter falas explicativas incluídas no corte do diretor. Outros, cantaram desde pequenos, cantam pela vida e cantam mais de uma canção.
Seus filmes dão abrigo para as histórias que são contadas e, desse modo, se expõem aos riscos de lidar com substância sensível, frágil, “palavras ditas por quem não costuma ser escutado”. “Ao criar um cinema tão dependente da invenção narrativa de outros, Coutinho abre mão de uma parcela da soberania que lhe pertence como autor. Ao confiar nos seus personagens, renuncia parte de sua autoridade”, comenta João Moreira Salles, no prefácio do livro O documentário de Eduardo Coutinho – televisão, cinema e vídeo, de Consuelo Lins.
As canções deixa claro a concepção de um projeto cinematográfico sempre em movimento. E trata de acrescentar camadas a sua personalidade de entrevistador, a de entrega e espontaneidade. Reforça a captura do agora. O filme, que tem por intenção contar memórias das pessoas relacionadas à música, transforma o recurso da entrevista, já conhecido pelo diretor, em “uma verdadeira celebração do encontro”, como evidencia Fábio Andrade. O presente é a matéria do registro e nele cabem celulares tocando no meio da gravação, choros inesperados e pausas para o pensamento.
Toda a composição de “As Canções” tem como objetivo direcionar a atenção para os personagens e o que eles dizem. A estética minimalista, a locação única, os enquadramentos estáticos. O diretor não aparece e sua voz é pontual. Em alguns momentos, como mencionado anteriormente, é carregado por suas emoções e interfere de maneira mais incisiva. Isso, no entanto, só reitera o poder dos discursos, capaz de retirar o entrevistador de sua posição de neutralidade. Os discursos orquestram o filme. Coutinho trabalha com a potência das falas e, ao contrário dos métodos televisivos de entrevista, valoriza e aproveita os silêncios.
Aí está a música de sua obra, composta por sons e pausas. A temática do filme, então, adquire ainda mais força por resgatar as histórias ligadas às canções e ao deixar os entrevistados sem palavras nem notas. A canção, que seria a representação de um momento, não abrange a experiência por completo, resta o silêncio. O documentário, como ele mesmo explica, gênero indefinido, traduz a incapacidade de definir sentimentos e a beleza disso.
No texto Um documentarista à procura de personagens, Cláudio Bezerra explica a mudança dos personagens apresentados por Coutinho do período em que ele trabalhou no Globo Repórter (1975-1984) para o que sucedeu Cabra marcado para morrer (1984). O que antes eram personagens atribuídos a papéis de herói e vítima, mais tarde, foram transformados em personagens contraditórios. A complexidade desses personagens e a estruturação de seus documentários na palavra gerada deram liberdade para que as pessoas atuassem em frente às câmeras. Daí, da exposição da natureza performática, a teatralidade se revela “como uma segunda natureza humana”. Uma dessas formas de performar, Bezerra descreve justamente como “performance musical”, predominante em “As Canções”, o recurso já havia sido explorado em outros filmes. Como Henrique, Nadir e Paulo Mata que cantam em Edifício Master; Fátima, Paulo Sérgio, Jorge e Luiz Carlos em Babilônia 2000.
A música, de uma forma ou de outra, sempre esteve presente nos filmes desse que é um dos mais emblemáticos cineastas brasileiros. Embora tenha elaborado um procedimento, ou um dispositivo, como costumava definir, que prezasse pela captura do som direto, sem adição de elementos sonoros na montagem, uma musicalidade marcante e genuína surgia de seus entrevistados. Era inerente à teatralidade deles. Nesse sentido, “As Canções” surge como uma espécie de homenagem a essa arte que dá tônus à existência humana. Talvez como forma de afirmar o que seus filmes nunca haviam dito tão claramente: a trilha sonora existe e ela importa.
Texto: Miréia Figueiredo/Estúdio Veredas
Foto: Divulgação