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26/04/2019

Caçadores das vozes da natureza

Nas cidades, recebemos passivamente todos os sinais ao redor, compondo uma espécie de playlist caótica de sonoridades compostas por passos de transeuntes, buzinas de carros, freadas de ônibus, murmurinho do comércio. Já na natureza, uma melodia silenciosa tem cadência com o correr das águas, o cair das folhas, o som dos pássaros, compondo uma paisagem musical sem intervenção direta do homem. Para conviver nesses arranjos de muitas massas sonoras, nos meios urbano ou rural, é preciso, antes de tudo, saber ouvir as notas.

“Ao invés de ouvir um som, eu simplesmente ouço o lugar”, diz Gordon Hempton, um mestre cuja habilidade é uma arte que arrefece pouco a pouco: ouvir. Para o músico, protagonista do curta-metragem “Being Hear” (Palmer Morse, Matthew Mikkelsen; 2016), um dos destaques da Ciranda de Filmes 2019, a quietude permite que cada som receba sua importância original. Em busca de lugares livres de poluição sonora, encontrou na natureza o estado mais bruto dos sons, com conjuntos sonoros inumeráveis e multifacetados de um ambiente que se comunica de modo tão cheio e rico quanto nós humanos o fazemos.

O silêncio é o melhor conselheiro da alma. Numa narrativa subjetiva, em primeira pessoa, a voz de Gordon faz ecoar reflexões como essa, dirigidas a uma sociedade que vive em plena era da informação, repleta de ruídos, entre outros tantos excessos. Suas indagações tocam as falas constantes e matizadas da natureza, sempre ávida em comunicar, a alarmante extinção de lugares não afetados pela atividade humana e o modo como a quietude pode abrir nossos olhos (ou melhor, ouvidos) para renovadas percepções. Ao gravar sonoridades genuínas da natureza, seu interesse não é só o som ou o silêncio em si, mas o treino para se tornar um melhor ouvinte.

Outro caçador dessas vozes da natureza é o músico norte-americano Bernie Krause, reconhecido mestre da bioacústica (estudo dos sons de animais vivos) que, desde 1960, roda os rincões do planeta, por desertos, pântanos, mares e florestas, entre outros lugares com diminuta intervenção humana, para gravar as sonoridades de uma ampla diversidade de paisagens. Krause, que já fez som com lendas do showbiz como Bob Dylan, George Harrison e Stevie Wonder, coleciona há décadas uma biblioteca de sons abarcando mais de quatro mil horas de gravação e 15 mil espécies em seu habitat natural. E quantos estamos nós atentos a ouvir as muitas falas da flora e da fauna, para além das reverberações humanas?

Quando menino crescido em Detroit, o músico lembra que se deitava à noite ao som dos pássaros e dos ventos. De sua janela que se abria para uma ampla paisagem, ficava imaginando que mundos sonoros seriam aqueles distantes e desconhecidos. Mas, criado por pais que inacreditavelmente “odiavam” animais, proibidos dentro de casa, isso foi o máximo de aproximação que experienciou com o mundo natural na infância. Já a música chegou bem mais cedo em sua vida: ainda garoto, começou a estudar violino. Ao perceber que com tal instrumento na mão não atrairia a atenção das garotas, decidiu dedilhar o violão. Percorreu um longo caminho até chegar ao estudo da orquestra existente (para quem está aberto a ouvir) na natureza.

É essa música do mundo natural que ouvimos ecoar no curta-metragem documental Nature’s orchestra: sounds of our changing planet (Robert Hillman; 2016), em que o pesquisador ressalta a necessidade da humanidade se desconectar um pouco dos sons das cidades e das máquinas. Numa sociedade tão orientada pela visualidade, um tanto dispersiva, ele aponta que os sons da natureza nos conectam com que nós somos, com o nosso mais profundo interior, num verdadeiro chamado imersivo.

Ao gravar os sons naturais, ele explica, é possível interpretar muito rapidamente as consequências da atividade humana no planeta. Os cientistas e ambientalistas estudam geralmente o que veem – e não o que ouvem. E o que vemos é bem diferente do que ouvimos. Os habitats podem parecer o mesmo, mas dificilmente soam o mesmo, ele defende. Cada espécie sussurra algo único, singular. “Mesmo em uma floresta densa como a da Amazônia, se você cortar apenas algumas árvores ali, as consequências serão sentidas em grande escala pelos animais que ocupam esse lugar há muito tempo. Ou seja, um efeito profundo no som que será sentido muito rapidamente. Nós temos que pensar nas formas como estamos afetando esses lugares e perguntar a nós mesmos se é isso o que queremos, o silêncio do mundo natural”, diz o pesquisador em entrevista à revista Galileu.

No filme desse colecionador de sons naturais, muitos deles captados em terras brasileiras, em cantos da floresta amazônica ou da mata atlântica, escutamos de perto suas buscas numa expedição às paisagens inóspitas do ártico, nos arredores do Arctic National Wildlife Refuge, uma das últimas fronteiras do nosso planeta, onde é possível andar semanas em qualquer direção, norte ou sul, sem ouvir um som de carro na estrada ou o ruído do trinco enferrujado de uma porteira. Ao desembarcar lá com sua equipe, incluindo sonoplastas, naturalistas e poetas, no fim de primavera, quase verão, registra sons tão sutis e imperceptíveis quanto o derreter do gelo. É que “a música do mundo natural contém os segredos do amor de todas as coisas, especialmente de nossa humanidade”, conclui.

Texto: Carolina Tiemi e Gabriela Romeu/Estúdio Veredas

Fotos: Divulgação