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06/11/2019
Um convite para ouvirmos a música do silêncio
Levantei algumas reflexões para podemos trocar em um diálogo aberto inspirado por este documentário delicado de Mariam Chachia, da Georgia: “Ouça o silêncio“(Listen to the silence). O filme é, para mim, um convite para que ouçamos o silêncio, ouçamos atentamente a música do silêncio. Mas de que silêncio esse filme tão tocante e sensível nos fala?
Aquele que contrasta com a tagarelice ruidosa de nosso época, cheia de palavras sem qualquer ressonância com emoções verdadeiras? O silêncio daqueles que, como Luka [protagonista do filme], não têm as palavras como veículo para suas emoções e aprendizagem? O silêncio, necessário da nossa mente, para estarmos atentos para os sinais e ritmos sutis do nosso corpo? A busca silenciosa e a resiliente necessidade de pertencimento das crianças, mesmo diante de tantas singularidades como o protagonista: surdo, hiperativo, impulsivo, as vezes aparentemente agressivo e desconcertante, mas essencialmente encantador, humano e comovente.
“Ouça o silêncio”não é apenas um convite, mas, acima de tudo, um chamado, é um chamado para todos nós: 1) Pais, que não compreendem a linguagem, o código ou o comportamento dos próprios filhos, mas não desistem de empreender afetivamente novas possibilidades de aproximação. 2) Educadores, que não apenas insistem nas regras e nos métodos formatados, que podem ser moldes ou ferramentas, mas que não servem para todos. Os passos síncronos da dança georgeana não possibilitam que Luka expresse sua individualidade e concretize seu verdadeiro sonho. Pelo contrário, a formatação o coloca diante de suas dificuldades, que quase o faz desistir. Não somos todos iguais. Somos essencialmente diversos e únicos, como Luka.
Despertarmos para o poder libertador da arte na emergência dessa singularidade é trazer a importância da experiência estética na educação das crianças, fundamental, pois elas nos libertam também dos muitos condicionamentos, dos enquadramentos limitantes que não permitem a expressão da nossa verdadeira identidade. Neste sentido, a arte, a dança e a música são ferramentas poderosas de expressão das crianças, já que orquestram comportamentos únicos e grupais enquanto linguagem universal de múltiplos significados que é, em sua essência, intrinsicamente emocional e compartilhada.
A música é talvez a mais subjetiva e humana das artes, pois ela é essencialmente emoção e consciência do tempo: “Além de se desenvolver em um suposto tempo, a música é o próprio tempo, e como acontecimento temporal, algumas vezes marca, delimita, e dá o tempo; outras vezes, pode trazer diferentes ideias, ora de coexistência, ora de suspensão, ora de ausência do tempo” (Craveiro de Sá; 2003).
A música é também o resultado da incrível transformação de vibrações de ar em um sistema subjetivo complexo, que traduz estados de tensão, expectativa e expressão da nossa identidade corporal e da nossa imaginação.
Quando Luka compreende a natureza da vibração da música na expressão tátil das ondas dos aparelhos de áudio – para ele, silenciosas mas orgânicas –, consegue também expressar sua identidade em um jogo orgânico de ritmo, emoção, sombra e imagem. Conectar-se com a música significa para ele ser livre para efetivar o sonho de pertencimento e de equidade.
Essa experiência foi essencial para que Luka pudesse reconhecer e abrir-se por inteiro para compartilhar com o outro, reconhecer-se com seus pais orgulhosos, seus pares e educadores e, assim, fortalecer sua cognição como ser social. Nossas crianças são extremamente carentes de experiências estéticas que as libertem de condicionamentos que aprisionam os sentidos e que possibilitem transcender e ocupar o espaço da singularidade essencial para o reconhecimento individual e social de sermos livres e espontâneos para compartilhar com o outro a nossa verdade e nossas diferenças.
Hoje, em neurociência, fala-se de ‘“embody cognition” (ou cognição corporificava) enfatizando a importância das sensações corporais, dos sentidos para a aprendizagem efetiva. Isso vai no contrafluxo desta era digital, em que o corpo é cada vez mais negligenciado, inerte, em detrimento das enxurrada de imagens e palavras e do tempo vertiginoso, rápido de máquina, que é tão diferente do tempo real, tempo com sentido e sentimentos, tempo simbólico, veículo de emoções e sentimentos compartilhados.
A música organiza basicamente as emoções, que não são necessariamente emoções utilitárias, como o medo, a raiva, o nojo, mas emoções estéticas que, além do prazer ou desconforto, envolvem dimensões transcendentes de maravilhamento, paz, sublimidade, poder e nostalgia. Precisamos , tanto na escola quanto na vida, de maneira geral, mais de arte do que de tecnologia. Devemos nos questionar em que medida a introdução precoce de tecnologia não cria alienados digitais, que estão, na verdade, treinando, reforçando redes neurais, já que o cérebro tem plasticidade, de como não reconhecer o outro, como treinar o imediatismo, como alienar o próprio corpo da aprendizagem. Diante da máquina o corpo está amortecido, enquanto a mente é poluída por imagens potentes e intrusivas que bloqueiam a reflexão, o silêncio e o compartilhamento de emoções.
Nesse sentido o poder transformador da arte pode ser um antídoto potente para essa alienação. A música, enquanto aliada da educação e da vida das crianças, também deixa a sua zona hedonista de conforto, enquanto díade ouvir prazer, para tornar-se um veículo de inclusão, transformador da nossa consciência, fundamental para nos mantermos empáticos e essencialmente humanos em nossa natureza complexa corporal, singular, social e transcendente.
Por Mauro Muszkat