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13/08/2019

Casinhas habitadas de infâncias

A menina Clarisse Alvarenga era uma verdadeira arquiteta. Crescida em Belo Horizonte, ela não montava necessariamente casinhas, mas espaços para serem ocupados, habitados, por sua infância. Hoje, já adulta, ela constrói cuidadosamente os saberes que observa nas infâncias pelo Brasil em filmes como “Ô de casa” (2007), documentário que integra a Mostra Itinerante da Ciranda de Filmes, que passa por cinco cidades brasileiras. “Acredito que as brincadeiras são momentos importantes da vida do ser humano, pois é quando você experimenta o mundo a partir dos seus sentidos, do seu olhar, do seu paladar, do seu olfato, do seu tato.”
Quando começou a filmar as crianças brincando de casinha, a diretora não tinha certeza se essa era uma brincadeira da qual gostava, ou mesmo se tinha a intenção de fazer um longa sobre o tema. Enquanto terminava seu outro filme, Umdolasi, para o qual passou um ano filmando as crianças numa praça no Alto de Vera Cruz, bairro em Belo Horizonte, a casinha de um grupo chamou a sua atenção. A intensidade com a qual as crianças brincavam impactou a documentarista e inspirou uma pesquisa mais focada nessa brincadeira simbólica. Durante o processo, ela foi se deparando com memórias e lembranças da própria infância, que bateram na porta não só pela identificação, mas, principalmente, pela diferença.
Com outros pesquisadores da cultura da infância, mestres brincantes e sua equipe, buscou observar, escutar e brincar com as diversas crianças que encontrou, convivendo um pouco com elas. Visitou casinhas em quatro regiões diferentes: Médio Vale do Jequitinhonha (Jenipapo de Minas e Coronel Murta); na aldeia Imbirussú, em Carmésia, onde vivem os Pataxó de Minas; em São Sebastião das Águas Claras e em Belo Horizonte (Alto Vera Cruz). Assim, para investigar esse brincar, fez paradas em aldeia indígena, num território de uma comunidade quilombola, numa comunidade sertaneja, na periferia de um grande centro urbano.
Em cada parada, percebia as convergências e especificidades das moradas construídas por meninas e meninos. “A brincadeira é universal no sentido de que todas as crianças brincam e podem brincar de casinha e podem construir seu próprio espaço no mundo. Mas os mundos que cada uma dessas crianças constroem são muito diferentes, porque os territórios são diferentes, as maneiras de habitar esses territórios são diferentes e essa que é a grande riqueza.”
A cineasta não coloca o cinema como uma ferramenta de registro acima da infância. Por isso, para ser bem recebida nas casas, tirou os sapatos e pediu licença. Entendeu que partiria das crianças e das brincadeiras para chegar ao cinema – e não de qualquer ideia pré-estabelecida sobre as representações das crianças, a cena, o roteiro, a montagem, a infância, as brincadeiras. Com a câmera disposta sempre numa altura baixa, ao alcance das mãos das crianças, não quis captar a brincadeira de um ponto de vista adulto. Permitiu com que as crianças interagissem com as lentes e com a equipe num delicado jogo, como se filmar fosse também uma maneira de brincar. E com isso as crianças dispensavam aos equipamentos o mesmo cuidado que nutriam por seus próprios brinquedos.
Entre os galhos, folhas de bananeira e materiais de construção de segunda mão, as casinhas que “Ô de casa” revelam pequenos gestos cotidianos, as vivências e os ambientes dessas crianças. Carregam consigo narrativas domésticas, familiares, escolares. Também tinham visitas indesejadas, bagunça e arrumação, divisão de tarefas ‒ fazer o almoço com as meninas e colher palha com os meninos.
As estruturas dessas casas foram feitas de muito estudo e pesquisa. Sua arquiteta carregou tijolo a tijolo um conhecimento sobre cinema e infância que foi sendo montado, empilhado, solidificado. O trabalho de Clarisse na Universidade Federal de Minas Gerais, onde leciona e coordena Laboratório de Práticas Audiovisuais na Faculdade de Educação, também é de dar o material e ensinar a construir. Na instituição, ela trabalha com estudantes indígenas, do campo e professores, sempre pensando no uso que cada um desses grupos faz do cinema: “A ideia é possibilitar que o cinema esteja mais próximo dessas pessoas, seja uma realidade na vida delas, para se expressar e pesquisar por meio do cinema”. Reboca os pilares com uma metodologia de trabalho que parece simples, mas mostra uma inversão no próprio trabalho com o cinema. Pinta as paredes com a descrença que a infância é um território conhecido, a ser dominado, enquadrado, abrindo janelas para uma arte cinematográfica reinventada em conjunto com as crianças.
Há muito o que aprender ao observar as crianças ou pensar na construção da sua própria casinha. A cineasta destaca as muitas formas de viver, cada lugar a partir dos materiais que têm disponíveis, da sua geografia e ambiente, cada casa de um jeito singular, específico, próprio. “As diferenças entre as casinhas mostram isso. E é uma vida que leva em consideração a natureza, a floresta, os elementos que estão disponíveis ali, é uma vida sustentável, que habita esses espaços sem destruí-los. É interessante pensar como as crianças criam esses espaços sem comprometê-los. Elas fazem um uso muito ecológico desses lugares, acho que isso é algo que podemos aprender olhando para elas e olhando o filme.” A brincadeira pode refletir sobre essa construção, evocar as memórias das nossas casinhas.”
E é essa reflexão que se faz morada na nossa Mostra Itinerante. “Acho importante a iniciativa da Ciranda de Filmes no sentido de reunir esses filmes que dialogam muito uns com os outros e, ao dialogarem, ampliam os sentidos que são produzidos ali. É importante sabermos que existe essa produção no Brasil, que existem pessoas que estão interessadas em pensar a infância e fazendo uso do cinema para isso, abrindo um espaço no cinema para a criança e para a infância”, diz Clarisse.
Assista “Ô de casa” aqui ou na página oficial da diretora.