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09/10/2017
A complexidade da vida nas narrativas infantis
Bonnie, uma menina de 9 anos apaixonada por elefantes, está desolada com a morte da avó. À noite, enquanto a avó permanecia imóvel, no quarto ao lado, ela tentava dormir quieta. Mas logo se lembrou de como agem os elefantes numa situação difícil: nunca deixam os seus “parentes” para trás. Foi quando decidiu ir ao encontro da avó morta, sobre a cama. Deitou-se ao lado dela, sem receio do corpo inerte. A mãe de Bonnie, que viu a cena ao entrar no recinto, não hesitou em (estranhamente) cobrir com um lençol as duas, filha e mãe morta, aconchegando ambas em um terno abraço.
Quem escreveu essa cena tão inquietante quanto afetuosa foi a roteirista holandesa Mieke de Jong, autora de dezenas de séries e filmes para crianças. Premiada por suas criações cheias de personagens densos, em situações intrigantes, tais como a descrita acima, ela ministrou em fins de setembro uma master class no Fórum Pensar a Infância, do 15o FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil), em São Paulo. Numa sala repleta de realizadores e educadores, difícil quem não saiu inspirado com a fala potente sobre como escrever obras que não consideram a criança “pequena”, assim como define a roteirista. Uma aula e tanto.
“Como fazer filmes sérios de um jeito divertido?”, questionou de pronto. É que “sem humor, a vida fica insuportável”, completou na sequência. Nos filmes da roteirista, os personagens infantis enfrentam desafios da vida real, como abandono, conflitos familiares, preconceito e pais difíceis, como a mãe bipolar de Bonnie, ao mesmo tempo em que têm um elefante no quintal, podem ganhar asas para voar ou ter um professor que se transforme em sapo. A fantasia, no entanto, nunca é uma fuga. “Um bom filme, assim como um bom livro, ajuda a gente a entender um pouco mais o mundo que habitamos”, diz Mieke, que sabe abarcar a estranheza em suas histórias.
A explicação para a criação de histórias com temas desafiadores, que levam seus personagens ao extremo, está na busca por entendê-los. “Em tempos difíceis, você conhece seus personagens. Eles se mostram. Só nesses momentos vemos quem realmente são, como se sentem, o que desejam”, conta Mieke, que propõe filmes críticos e reflexivos às crianças. São obras que falam da vida em sua mais pulsante verdade. “Gosto de levá-los a sério. Gosto de filmes com personagens complexos que me surpreendam, fazendo o que você nunca esperaria que eles fizessem, mas que entenda quando os veja fazendo.” Difícil não se comover (e também se divertir) intensamente com seus personagens, que, acredita, vêm antes da narrativa.
“Do ponto de vista das crianças, dá para contar todas as histórias, abordar todos os temas”, diz Mieke, que fala inclusive de sexo, ainda um tabu nos dias de hoje, na história da menina Bonnie. Tal preceito, que faz parte da bíblia de qualquer profissional empenhado em produzir para crianças, raras vezes é aplicado com tamanha habilidade. Em Mr. Frog (Professor Sapo, em tradução livre), por exemplo, ela conta a história de um professor que se transforma em sapo, em uma alegoria ao tema da homossexualidade. Tudo é contado pelo ponto de vista de uma de suas alunas, uma menina solitária, sem pai e cuja mãe vive ocupada. É ela quem o ajuda na tarefa de entender diferente. Mieke nos descortina o mundo infantil em seus filmes.
“Quanto de tristeza podemos mostrar às crianças?”, questiona Mieke, convidando a plateia de produtores a pensar. Uma de suas produções mais recentes é uma série de TV (20 episódios de 10 minutos cada um) intitulada Sem família (Nobody’s Boy, em inglês), inspirada num tradicional livro francês do século 19, escrito por Hector Malot – várias outras produções nasceram dessa história. A série traz as desventuras de um menino órfão pelas ruas da Holanda dos dias de hoje para encontrar sua tão sonhada família.
Escrever para meninas e meninos é tarefa de grande responsabilidade, já que as crianças ainda estão em processo de conhecer o mundo que lhes está sendo narrado. Na tela de cinema são expostas a diferentes realidades, diz a roteirista. “Você pode viver a vida de outra pessoa por um tempo. Você descobre o que ela sente, pensa e fala, pode se tornar uma pessoa mais compreensiva.” Para atender a essa missão, busca uma conexão com a criança que um dia foi. O universo infantil está ali, em cada espectador. Todos já passamos pela experiência de ser criança, e é isso que busca resgatar.
Ela não defende finais felizes em suas histórias, mas destaca que nunca escreveria um filme sem esperança. Nem sempre seus personagens conseguem necessariamente o que buscam. “Mas conseguem outra coisa. Algo que precisavam até mais.”
Em Tony Ten, o protagonista faz de tudo para manter unidos os pais que vivem em desavenças. Diferentemente do esperado, não vence no final, quando descobre que o melhor é que se separem de vez. É o que ela chama de “moral winner”, uma espécie de vencedor moral. “Nos meus filmes, as crianças sempre vencem, mas nem sempre conseguem o que sonhavam inicialmente”, conclui a roteirista, que bem sabe abarcar a tristeza e a estranheza numa mesma receita recheada de empatia. Traz a vida como ela é, com todas as suas complexidades, enredada com poesia, humor e fantasia de um jeito suave, tal como o voo da menina-passarinha do longa-metragem Iep!.
Para saber mais, leia entrevista que Mieke de Jong deu à jornalista e roteirista Gabriella Mancini há alguns anos.
Texto: Gabriela Romeu e Luisa Cortés