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11/08/2015

Para saber passarinhos

por Gabriela Romeu

A tarde virou uma “manhã desabrochada a pássaros”. A plateia, um coro de passarinhos. O palestrante, um brincante – ou maestro de um concerto de corujas, cucos, gralhas, quero-queros e bem-te-vis. Assim foi inaugurada a segunda roda de conversas da Ciranda de Filmes, que reuniu o educador Marcos Ferreira Santos (nosso maestro), a artista plástica e curadora Stela Barbieri, a também educadora Maria Amélia Pereira, a Péo, e a cineasta Fernanda Heinz Figueiredo para uma prosa sobre espaços de aprendizagem.

A imagem dos pássaros bem sintetiza o encontro, que rompeu os muros da escola já nas lembranças e experiências do aprender-viver dos quatro palestrantes – leia mais na biografia escolar (ou contra-escolar) descrita abaixo. A natureza, como espaço de aprendizagem fundamental à infância, foi uma constante em toda a prosa (e em muitos versos). De que adiantam os conteúdos escolares se já não sabemos mais passarinhos?

Ainda evocando os pássaros, o professor de mitologia comparada tirou da mochila sua flauta andina e espalhou na sala uma sonoridade que parece ao mesmo tempo tão longe e tão perto de todos nós. Resgatou as imagens de um dos filmes exibidos no festival – “O Menino e o Mundo”. Na premiada animação de Alê Abreu, um menino pequenino e saltitante segue o som de uma flauta que foi plantado em seu quintal e em seu coração. Está em busca da figura paterna. “Essa flauta também me acompanha por muito tempo”, conta Marcos, que foi alfabetizado pelo pai na infância.

A importância do sonho foi instaurada e também percorreu todas as falas. “Todas as comunidades tradicionais ameríndias ou afro-brasileiras se pautam pelo sonho. O sonho define quem você vai ser, o que vai fazer na comunidade. Qual é o único povo que não se pauta pelo sonho? O ocidental. Pra mim, o ‘dream is over’ não é over nada. Tudo começa com um sonho”, enfatizou o educador. “A grande dívida que temos com a ancestralidade é sermos nós mesmos.”

Como que nos embalando em sua cadeira de balanço, Stela Barbieri teceu imagens sobre cinema, imaginação e aprendizagem. A cadeira de balanço surge algo singular na infância de Stela, que brinca ao dizer que o melhor que sabe fazer é “balançar”. No delicado balanço de sua voz maviosa, falou do mistério do cinema. “Quando a gente senta nessa cadeira e mergulha no filme, o tempo para, você entra num outro tempo. O cinema é a arte que mais se aproxima da imaginação, a gente imagina em movimento. O cinema nos embala e alimenta nossa imaginação e nosso sonho.”

A aprendizagem, segundo Stela, tem um balanço entre o “deixar ser e ao mesmo tempo ajudar a ser”. “Talvez tenham assistido ao filme ‘Birth Story’ [exibido na Ciranda de Filmes]. Fico pensando que a parteira deixa o nenê nascer e ao mesmo tempo o ajuda a nascer. O educador também tem esse papel.”

O educador, segundo Maria Amélia Pereira, a Péo, necessita beber na fonte da poesia. Fundadora da Casa Redonda, é nesse espaço de viver a infância que Péo diz se formar dia a dia como educadora. É uma eterna aprendiz. “Quem vem me formando como educadora são na verdade os poetas, que estão mais perto dos sonhos e das crianças. As crianças são também pequenos poetas porque, diante delas, a cada dia um mistério se revela.”

Péo enfatizou que o ser humano é um aprendiz nato. “Herdamos esse mundo para uma grande aventura, que é a aventura da consciência. O trajeto humano se inicia na criança, no qual o brincar é a linguagem primeira. O brincar é a linguagem da espontaneidade, da imprevisibilidade, da disponibilidade, de um movimento de ações que não tem nenhum caráter utilitário, um tem que, um faço isso para que”, afirma.

Atenta observadora da alma infantil, a educadora conta que no cotidiano com as crianças os aprendizados brotam em cada gesto, em muitos encontros e diálogos. São incríveis relatos de percepções de vida, como a história de uma criança que, quieta e envolta na areia do tanque da Casa Redonda, disse aos amigos que a importunavam: “Será que não posso nem morrer tranquila?”. Péo nos leva por suas reflexões: “Aquela criança estava entregue a sua essência misteriosa. Por isso é preciso ter cuidado, respeito a essas horas sagradas do brincar. E são relações que a gente pode interferir de uma forma inadequada se não descobre o silêncio diante da criança que brinca”.

Numa fala contundente, a educadora chamou atenção para o erro de separar o espaço da natureza de um espaço de construção do humano. “Estamos vivendo um momento de profunda desconexão com a natureza e por isso estamos adoecendo. O problema do homem foi se desconectar da natureza, ali está o chão da criança.” E deixou seu recado para os educadores: “É preciso dar à infância o direito humano de brincar e de pisar na terra com tranquilidade. A falta da natureza é uma violência contra o ser humano”.

Foi numa escola que potencializa também o humano que cresceu brincando e aprendendo a documentarista Fernanda Heinz Figueiredo, diretora do filme “Sementes do Nosso Quintal”. No corpo vivido na Te-Arte, como Fernanda costuma dizer, dialogou intensamente com a natureza. A cineasta conta que, quase três décadas depois de estudar (ou melhor, brincar) na Te-Arte, retorna à escola carregando sua filha caçula, Gaia, aos oito meses, no colo. Na mão, uma câmera. Queria fazer um filme que resgatasse também sua história de menina.

Foram quatro anos para produzir o longa-metragem, que teve pré-estreia na Ciranda de Filmes. Nesse processo, descobriu que o desafio era mostrar que muitos paradigmas a serem derrubados na educação eram já exercitados e vividos na sua escola de infância. “No roteiro, a gente tentou refletir um processo de experiência. Falamos de paradigmas que precisamos quebrar, como o de segurança, que bloqueia a apropriação do corpo, e o de higiene, que impede que a gente tenha contato com a natureza.”

No dizer de Marcos, a documentarista mostrou forte vocação tecelã, uma verdadeira Ariadne, “essa senhora do labirinto”. “Ela nos dá o fio narrativo para que agente entre no coração da experiência. E não há como negar, o coração da experiência está no centro do labirinto, tem um minotauro lá dentro. Você é quem tem que enfrentar esse minotauro, com suas fraquezas e idiossincrasias. E a Fernanda faz isso ao retratar a vida das crianças com um cine-olho respeitoso, que não olha de cima, e cheio de cumplicidade”, aponta o educador.

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Abaixo, um breve biografia escolar dos palestrantes dessa roda de conversa.

Marcos Ferreira Santos
(Professor de mitologia comparada da USP, pedagogo e arte-educador)
Em sua “biografia contra-escolar”, Marcos Ferreira Santos conta que foi alfabetizado pelo pai. Começou a ler aos seis anos nos livros escolhidos pelo pai meio que por intuição – Sócrates, literatura chinesa, mitologia, socialismo. Ao chegar à escola, logo aprendeu a primeira lição: deveria ficar calado. Seguiu calado pelas séries seguintes. Descobriu outros espaços de aprendizagem na vida – no teatro, no movimento anarquista, na música andina de imigrantes chilenos e bolivianos, em muitos sebos. O chão da fábrica no ABC paulista, onde começou a trabalhar aos nove anos, foi outra escola. Com um mestre chileno, descobriu Pablo Neruda e Violeta Parra, ouviu falar sobre temas como autonomia indígena, repressão, ditaduras militares. Com tal “histórico escolar”, ele conta que talvez, por vingança, seja hoje uma tentativa de educador.

Stela Barbieri
(Artista plástica, curadora educacional da Fundação Bienal de São Paulo, escritora e contadora de histórias)
Lá na Araraquara da infância da Stela Barbieri, existia uma cadeira de balanço. Stela balançava em sua cadeira e fazia bolos de terra. Balançava em sua cadeira e corria atrás das galinhas. Balançava em sua cadeira e construía cabanas e muitos outros mundos. O mundo todo passava ali, só naquele balanço. Mais do que a escola, parece que essa cadeira de balanço foi uma verdadeira incubadora de ideias, pra toda uma vida.

Maria Amélia Pereira (Péo)
(Pedagoga, fundadora e orientadora do Centro de Estudos Casa Redonda)
Criada na Salvador dos anos 40 e 50, teve o mar como um grande brinquedo. A praia, com todas as suas gentes, como um importante espaço de aprendizagem, um horizonte aberto. A escola, ainda jardim da infância, ficava pertinho do mar. Pura sorte da menina e de seus castelos de areia. Hoje, na Casa Redonda, a areia do brincar vem da praia – e não do rio. É que areia do mar tem sal, dá liga. Areia de rio é escorregadia. Sabe quem vivenciou no corpo. Assim, há tempos define a natureza como espaço de aprendizagem fundamental para a infância.

Fernanda Heinz Figueiredo
(Diretora do filme “Sementes do Nosso Quintal” e cocuradora da Ciranda de Filmes)
Fernanda Heinz Figueiredo conta que tudo sendo tecido e acreditado. Na chácara do avô, no viveiro de plantas dos pais, na sua primeira escola, a Te-arte. Quando perguntavam qual era sua religião, sempre respondia com convicção: a natureza. Essa certeza vem da paz ao cuidar das plantas, das brincadeiras com girinos e barquinhos nos laguinhos de escalava as árvores da chácara, de ouvir o silêncio absoluto preenchido pela sinfonia dos sapos e insetos notívagos, de se enlamear no campinho da te-arte ou pelo fascínio exercido pelo sangue das galinhas recém-sacrificadas para as festas juninas da escola. Não sabe ao certo, mas tudo ficou ali guardado de maneira intensa. Continua respondendo que sua religião é a natureza. Sementes do Nosso Quintal, seu primeiro longa, comunga com essa ideia.

Na foto, Maria Amélia Pereira, a Péo na Ciranda de 2014 – fotografia de: Aline Arruda